Capítulo oito

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Julie suspirou fundo e desviou o olhar para o chão, acho que essa é a resposta. Preciso começar a pensar no que vou falar para a Camille amanhã.
— Parte de mim quer dizer que não vai voltar mais, — Confessou com um leve suspiro. — mas outra parte que dizer que amanhã, depois do trabalho, eu vou estar aqui pra cuidar da Camille, afinal, como você disse, ela não tem culpa das coisas que acontecem entre nós dois…
— E o que você vai fazer? — A olhei.
— Eu ainda não sei. — Deu levemente de ombros. — Eu acho que… 
— Eu gostaria que você voltasse! — Julie me olhou, e nosso olhar se fixou. — Eu fui egoísta, estava pensando somente em mim, e não levei em consideração o que a Camille estava sentindo. Se sua vontade não for continuar aqui, que seja por uma escolha realmente sua, e não por causa do que aconteceu. 
Ela parecia surpresa com o que eu disse, e não a julgo por isso, mas nas últimas duas semanas tantas coisas se passaram pela minha cabeça, foi o mesmo inferno que eu passei quando saí do hospital após a morte da Louise, exatamente igual, e podendo fazer algo para mudar isso, não vou deixar que minha filha tenha a mesma experiência de antes.
— Eu não quero… — Pressionei os lábios concordando com a cabeça,  abaixando-a em seguida. — Eu não quero que me trate daquele jeito, nunca mais! — A olhei novamente. — E eu quero pedir que deixe a Camille sair daqui um pouco. 
— Somente quando eu estiver junto!
— Por que tem tanto medo que ela saia daqui?
— Porqu….
Papai? — Camille gritou vindo correndo na nossa direção. — Juju?
— O que foi meu amor? — Perguntei me levantando do balanço e abaixei para ficar na altura dela.
— A tia Carol tá chamando vocês.
— Nós dois? — Arqueei uma sobrancelha. 
Minha menina assentiu com a cabeça, olhei para a Julie sem entender, ela deu de ombros, voltei meu olhar para a Camille que sorria com uma carinha de criança travessa. Ela aprontou alguma coisa. Minha menina segurou minha mão e saiu me puxando para dentro de casa, com a Julie logo atrás nos acompanhando.

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— Então, pode terminar o que estava dizendo mais cedo? — Julie pediu baixo, acariciando os cabelos da Camille que dormia tranquilamente. — Sobre não deixar a Camille sair.
— Eu tentei… — Fiz uma pausa. — Eu fiquei internado alguns dias depois do acidente pra me recuperar de algumas lesões, e nesse meio tempo, o Alex contratou uma pessoa para ajudar a Carol com as coisas aqui, principalmente com a Camille, e eu realmente entendi os motivos dele na época, estava ficando tudo muito pesado para a Carol fazer sozinha, mas diferente de você, essa pessoa não era boa para a minha filha. — Ela ouvia tudo atentamente, e parecia um pouco mais compreensiva. — No dia que eu saí do hospital, resolvi que seria bom dar uma volta com ela, afinal a Camille queria muito sair um pouco, mas como eu ainda não estava cem por cento recuperado, eu tinha algumas limitações…
— Você se machucou muito? 
— Eu quebrei alguns ossos. — Dei levemente de ombros resumindo a informação. — Essa pessoa levou a Camille pra comprar sorvete enquanto eu fiquei sentado no parque esperando. Ela saiu com a minha filha e voltou sem ela. Ela se descuidou da Camille e a Camille saiu de perto dela pra acompanhar um homem que passou vendendo balões, eu tive sorte por ele ser uma pessoa boa e não ter feito nada de ruim com ela… — Fiz uma pausa, só a hipótese já fez meu estômago revirar. — Acontece que ela ficou o dia inteiro sumida, até a gente encontrar ela com esse cara de outro lado do parque, e eu não pude fazer muita coisa por não poder me mexer direito. Depois disso, não quis mais que ela trabalhasse aqui nem que saíssem com a Camille. Por isso eu fiquei tão nervoso quando você saiu com ela sem minha autorização, eu conheço a minha filha e sei que ela ser tão amigável assim, é um grande problema, aquela pessoa cuidando de uma única criança, descuidou dela, você estava com três, várias coisas poderiam ter acontecido. 
— Eu peço desculpas por ter saído com ela sem sua autorização, eu não imaginei que isso tinha acontecido. A Carol não me falou nada.
— Eu nunca falei para a Carol o porque eu demiti a mulher, era uma amiga dela, não queria deixar um clima ruim entre as duas, então por favor, não fale nada!
— Não, claro. — Assentiu com a cabeça. — Eu sinto muito. Acho que fui um pouco insensível em relação a isso, achei que tudo isso fosse um drama seu. 
— Eu sei que todo mundo pensa que sou um filho da puta, um egoísta, mas nem tudo que eu faço é pensando só em mim. A Camille é uma criança, eu não mandá-la para a escola, ter receio que ela saia daqui, não é pensando em mim. Às vezes acho que as pessoas esquecem que eu também já fui criança, e sei como crianças podem ser cruéis quando querem, eu não quero que minha filha passe por coisas ruins.
— Tipo?
— Na escola, nem todas as crianças têm a mesma sensibilidade que o Thomas pelo fato da Camille não ter mais a mãe dela aqui, vai por mim, Julie, crianças que crescem no meio social que eu vivi, e que até a Camille vive, são quase todas, crianças mesquinhas, pouquíssimas se salvam, a maioria são cópias exatas dos pais… — Experiência própria. — Se a Camille chegar em casa triste por causa de um comentário desnecessário de algum colega, acho que eu não responderia por mim.
— Uma hora ou outra, ela vai ter que ter contato com outras crianças, Luke, isso é inevitável, você não pode criá-la em uma bolha como se ela fosse de porcelana. — Comentou com calma. — Eu entendo seus medos, mas acho que a Cami não teria problemas estudando na escola que o Thommy e a Isa estudam. — Sorriu fraco. — Ela e a Isa têm praticamente a mesma idade, e tenho certeza que o Thomas iria cuidar muito bem dela como ele cuida da Isa.
— Talvez….
— Em todo caso, ela não é a única criança no Texas inteiro que não tem a mãe, ou o pai, tenho certeza que os professores dela estariam cientes de como lidar com a situação, e essa experiência seria boa até pra ela lidar com o que aconteceu também. — Deu um leve sorriso, um sorriso diferente dos que eu já vi vindo dela. — Em todo caso, você é o pai dela, deve saber o que está fazendo, e eu não vou falar o que você tem ou não que fazer.
Eu não imaginava isso, na verdade, me bloqueei pra isso, mas conversar com ela não era uma ideia tão ruim quanto eu imaginei que seria, ela é mais compreensível do que parece de primeiro momento, acho que ela só estava reagindo a forma como eu estava a tratando, e não a julgo, eu não estava sendo justo e a julguei sem motivos, mesmo que eu tivesse sido pego de surpresa com a presença dela aqui, não há justificativa que seja válida para a minha idiotice, mas me abrir com ela nesse momento pareceu essencial e necessário, se ela vai continuar aqui, o que eu realmente queria que ela fizesse, depois de ver como a Camille ficou sem a presença dela, não quero que ela vá embora de novo, acho que tenho que abaixar a guarda. Engraçado pensar como a Camille precisa dela, eu não sei o motivo, mas ela precisa da Julie, talvez como uma forma de suprir a falta da mãe, a relação dela com a Carol sempre foi diferente, ela a vê como "mãe do Thommy", mas a Julie, ela parece nutrir um carinho completamente diferente, e a forma como ela fica calma e dorme tranquila deitada no peito da Julie, é, de certa forma, reconfortante. Se minha filha precisa dela, eu a quero por perto e farei o possível para que ela fique.
— Por que aceitou trabalhar aqui? 
— Eu precisava do dinheiro. — Deu de ombros como se fosse bem óbvio.
— Sim, mas você já trabalha, por que aceitou um segundo emprego? 
— Minha faculdade teve reajuste, e eu não estava conseguindo pagar o aluguel, as contas e a mensalidade. 
— E está conseguindo agora? 
— Estou me virando, é difícil e cansativo, mas estou dando um jeitinho.
— Eu quero te fazer uma proposta, Julie.
— Se for casamento, já digo que você não faz o meu tipo. — Brincou dando uma leve risada que foi cessando aos poucos. Ela parece ter notado o que acabou de dizer e suas bochechas ficaram levemente avermelhadas.
Eu pensei em responder com uma brincadeira também, mas não achei que seria o momento pra isso, diferente dela, eu ainda levo as coisas mais a sério.
— Na verdade, — Dei um leve sorriso pra não ficar um clima tão ruim. — eu quero que deixe seu emprego na lanchonete. A partir de hoje, você não trabalha mais para o Alex, eu estou te contratando como babá da Camille, e considerando que você tem ficado até tarde aqui, acho que não tem tido tempo para estudar direito, então quero que trabalhe em um único lugar, e eu te pago o valor necessário para você conseguir se manter na sua vida pessoal e acadêmica.
Ela pareceu surpresa com o que eu disse, muito por sinal. Acho que ela não esperava isso vindo de mim.
— Por que isso agora? — Perguntou mantendo seu olhar fixo no meu.
— Eu tive as melhores oportunidades que um ser humano poderia ter, nunca precisei me preocupar com se o meu dinheiro daria para quitar todas as minhas contas, eu não estou dizendo isso pra me gabar, não é algo que eu me orgulhe, mas eu passei quatro anos da minha vida estudando algo que eu não gostava, enquanto o Reggie queria ter as mesmas oportunidades que eu tive de me formar. Ele passou pelas mesmas coisas que você está passando agora, tendo que trabalhar pra pagar os estudos dele, e eu admiro isso, mas eu sei como era exaustivo pra ele, ainda mais com uma criança prestes a nascer, ele não conseguiu concluir os estudos dele, e sei que ele se sente mal por isso até hoje. Trabalhando somente aqui, você teria tempo para se dedicar aos seus estudos, e cuidar da Camille. Não seria tão cansativo pra você sair da sua casa, ir para um serviço, depois vir pra cá, poderia dormir até um pouco mais tarde, e estudar mais cedo.
— O Alex se prontificou a pagar minha faculdade… — Comentou em um sussurro. — Ele comentou sobre o projeto que ele e a irmã dele faziam.
— E por que não aceitou? — Perguntei curioso.
— Eu vim de uma família simples que sempre batalhou muito pra sobreviver, eu tentei uma bolsa de estudos e não consegui, aceitar participar desse projeto parecia injusto para as pessoas que realmente precisam, então mesmo que eu tivesse que trancar a faculdade até me estabilizar financeiramente, parecia mais correto, e particularmente, pensei muito na Camille antes de aceitar.
— Na Camille? — Arqueei uma sobrancelha.
— Como o Alex foi me procurar, ele não falou nada sobre você. A Carol já tinha me dito que uma amiga dela havia falecido e deixado uma criança pequena, mas eu nunca mais toquei no assunto, então não sabia se você estava vivo ou não, porque não foi você quem foi me procurar. Eu fiquei pensando naquela garotinha que perdeu a mãe, se ela teria perdido o pai também, e por isso o tio estava assumindo a responsabilidade de contratar uma pessoa para ajudar a Carol. Se eu simplesmente aceitasse participar desse projeto, por que eu aceitaria o emprego de babá sendo que meu salário daria pra eu me manter em casa?!
Era nobre da parte dela pensar em tantas questões antes de aceitar o emprego, e principalmente, recusar a proposta do Alex. Qualquer pessoa no lugar dela não pensaria duas vezes.
— Então você achou que eu tinha morrido também? — Julie assentiu com a cabeça.
— Eu senti um peso enorme no peito com a ideia dela não ter pai nem mãe, tão nova, e perder os dois de uma forma tão trágica. 
— Quando minha mãe morreu, eu tinha quinze anos, foi um choque pra mim, mas eu já estava ciente da doença dela, então de certa forma, estava me preparando para o pior, odeio admitir mas senti mais o peso da morte dela que do meu pai. Mas nenhum de nós estávamos preparados para o que aconteceu com a Louise, e eu nem imagino como deve ter sido para o Alex conversar com a Camille sobre isso, já que eu estava no hospital e tinha a chance dela acabar ficando sem o pai também.
— Vira essa boca pra lá! 
— Em todo caso, o Alex ficou cem por cento responsável pela Camille por um tempo, e mesmo que ele tenha ajudado tanto, eu fui um baita idiota em várias situações.
— Ninguém tem o direito de te julgar por isso, Luke, você sofreu muito também, e acaba se cobrando demais por muitas coisas. Ninguém estava e não está na sua pele para apontar se você está certo ou errado. Você sabe que não concordo com algumas coisas que você faz ou diz, mas da mesma forma, não sou ninguém pra julgar certo ou errado. — Julie cobriu a boca, tentando evitar um bocejo.
— Já está tarde, acho melhor a gente ir dormir. — Mudei de assunto olhando as horas no relógio. 
As horas passaram e eu nem percebi.
— Eu não vou negar. — Sorriu fraco. — Hoje foi um dia muito bom. — Sorriu fraco.
— Foi mesmo. — Concordei levantando da poltrona. 
Eu não posso negar, foi um dia divertido, eu não me sentia assim há meses. Mesmo que hoje tenha sido um dia repleto de lembranças e confusão de sentimentos, foi algo inesperado. Eu já tinha avisado que não queria nada no meu aniversário, é o primeiro que eu passo sem a Louise desde que nos conhecemos, e não vou fingir que foi fácil, porque não foi, eu daria qualquer coisa para que ela estivesse aqui comigo hoje, mas ver o sorriso enorme no rosto da minha filha apagando minhas velinhas, fez valer cada segundo. A Camille é minha fonte de energia, não existe nada que eu não faça por ela.
Julie levantou arrumando a roupa, e eu cobri minha princesinha dando um beijo na testa dela. Camille se remexeu na cama e abraçou o unicórnio de pelúcia se virando para o outro lado. Um sono profundo, ela vai dormir a noite inteira de novo. 
— Que tipo de mágica você faz? — Perguntei encostando a porta do quarto quando saímos.
— Como assim? — Arqueou uma sobrancelha rindo.
— Para a Camille dormir. Eu nunca fui muito bom em fazer ela dormir, eu sempre fui melhor em fazer ela ficar cansada, a Louise era ótima para fazê-la dormir, e ela tem dormido muito bem desde que você pisou os pés aqui pela primeira vez.
— Eu não faço nada demais, a gente só fica conversando um pouco até ela cair no sono, geralmente não demora muito, ela dorme rápido.
— Ficar conversando… — Murmurei parando na porta do escritório. — Vou tentar da próxima vez.
— Ué, você não vai dormir? — Perguntou apontando para a porta do escritório.
— Eu deixei tudo de lado nos últimos dias para cuidar da Camille, então acumulou várias coisas de novo, eu preciso trabalhar.
— Mas já está tarde.
— Eu geralmente funciono melhor de noite ou de madrugada. — Sorri fraco. 
— Isso não é muito saudável, ainda mais porque a Carol disse que você não tem uma alimentação muito boa… — Fez uma pausa. — Quer dizer…
— Eu prometo que não vou trabalhar até tão tarde! — Levantei a mão esquerda colocando a direita no peito. — Vai descansar.
— Bom, você quem sabe. — Deu levemente de ombros, e sorriu fraco. — Passamos um dia inteiro juntos e sem discutir, acho que é um avanço. 
— Obrigado, Julie. — Agradeci. — De todas as razões que você teria para não ter vindo comigo ontem, você optou por vir, eu sei que já te agradeci, mas eu fico feliz que esteja aqui agora.
— Quem diria que você iria estar me agradecendo por estar aqui. — Riu. — Não precisa me agradecer. — Sorriu fraco. — Boa noite, Luke, até amanhã! 
— Até amanhã.
A observei enquanto ela se afastava no corredor entrava em um dos quartos.  

Ao ouvir seu coração | AU JUKE |Onde histórias criam vida. Descubra agora