┃ 𝐏 𝐑 𝐎 𝐋 𝐎 𝐆 𝐔 𝐄 ┃

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Mill Road, Cambridge
(1919)

O leve tom de laranja se fundia ao cor de rosa naquele céu, como em uma incrível obra de arte enquanto começava a anoitecer devagar. Eu adorava tirar apenas alguns minutos do meu dia pra presenciar o espetáculo que acontecia todos os dias ao entardecer. Era como o meu momento de paz em meio a tantos pensamentos que me rodeavam naqueles dias, principalmente quando me sentia perdida.

Contudo, hoje foi diferente. Ao olhar para aquele horizonte colorido com pinceladas generosas, onde o sol nos dava adeus para que a lua pudesse brilhar, tudo o que eu menos queria era sentir aquela paz habitualmente conhecida, e que só duraria por pouco tempo.

Não. Não dessa vez.

Eu merecia mais do que apenas alguns minutos de paz. E por mais que eu desejasse tê-la dentro da casa que um dia tive a esperança de se tornar o meu lar, eu sabia que não seria possível.

Até porquê, era quando o sol se escondia que a angústia me machucava de maneira mais grosseira dentro do meu peito.

Era quando ele voltava para casa.

Já fazia alguns minutos que eu havia entrado em casa, como em uma rotina invariável, pronta para começar a preparar o nosso jantar. Entretanto, não foi isso que fiz quando passei a encarar aquele fogão sem desviar o foco, enquanto punia a carne macia dos meus lábios com os dentes, ao mesmo tempo em que não deixava meus dedos quietos pelo nervosismo crescente.

Assim que acordei hoje de manhã, eu tomei uma decisão ainda que inconscientemente. A exaustão que corroía meus ossos não vinha de um dia cansativo. Não, muito pelo contrário, vinha da minha própria mente cansada de tantos pensamentos e cheia de sentimentos recolhidos.

Há tempos eu me sentia como um fantasma vagando dia após dia pelos cômodos daquela casa. Casa onde vivi dias bons e esperançosos, mas, como uma piada de mau gosto do universo, onde também vivi os piores dias da minha vida. Dias esses, que roubaram aos poucos, todos os resquícios de esperanças que eu tinha.

Mas, a culpa não era da casa em si. O dono dela era quem me fazia perder toda a minha saúde mental.

E o simples fato de ter perdido a capacidade de esquecer os maus momentos e ressaltar apenas os bons me deixava extremamente doente. Era como se eu anotasse diariamente em um bloco de notas dentro do meu cérebro cada mínima coisa ruim que me acontecia, fazendo com que o sentimento de rancor magoasse ainda mais o meu coração e não deixasse nenhum espaço para as coisas boas que ali eu já havia vivido.

Eu ainda encarava aquele fogão quando ele chegou. Quase que instantaneamente minha postura mudou, causando tensão em todos os meus músculos. Notei pela visão periférica sua sombra tirar os sapatos, deixá-lo no canto, e em seguida, colocar seu costumeiro chapéu no cabideiro de madeira próximo à porta pela qual havia entrado.

Apoiei minhas mãos na bancada, fechando os olhos e respirando fundo enquanto ouvia seus passos se afastarem em direção ao quarto.

Ele estava silencioso. E eu temia esses dias.


Mesmo tendo nascido e crescido em uma região violenta, com um pai vigarista e gangues circulando a todo momento, eu ainda era uma mulher. Por mais que fosse acostumada a assistir violências e ameaças de todos os tipos, eu ainda era uma pessoa fraca. Não aprendi a como enfrentar um homem; mais alto e mais forte que eu.

Ainda assim, há algum tempo eu vinha me preparando para o dia em que iria me impor contra suas atitudes desprezíveis.

Era eu, ou ele. E dessa vez, eu precisava me escolher.

Tinha que dar fim a tudo o que sofria nas mãos daquele que um dia pensei amar e que, em uma relação correta, era quem deveria me proteger.

O cansaço e a exaustão mental havia colocado em minha cabeça um único pensamento: ou eu arrisco minha vida para realmente vivê-la, ou eu continuo vivendo de joelhos, me sujeitando a todas as suas vontades e abusos até não poder suportar mais.

No entanto, quando passo a encarar aquele suporte de facas preso na parede listrada acima do balcão, eu decido pelo o quê devo arriscar... pelo o quê viver.

A verdade é que... os meus joelhos já estavam fartos e não suportariam mais ajoelhar diante de suas atitudes.

𝐆𝐔𝐍𝐏𝐎𝐖𝐃𝐄𝐑 ┃ Thomas ShelbyOnde histórias criam vida. Descubra agora