Capítulo XVIII - O que há mais valor?

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As estrelas ainda reluzem como a única chama de esperança acesa na escuridão da noite. O sol ainda não retornou, entretanto, os pássaros já começam a cantar suas sinfonias melodiosas.

Liu Han está sentado, quase deitado. Sua postura é torta, todavia confortável, e ele escreve em diversos papéis que estão sobre a mesa. O olhar dele é pesado e o arrastar do pincel nos papéis é cansado. Ele passou a noite inteira trabalhando porque não deseja descansar antes de estabelecer com firmeza o seu governo. Muitos nobres cobiçam a sua posição, e devido à idade dele, eles o subestimam e o atacam sem cessar. Entretanto, ainda há mais obstáculos, a corte é corrupta, e poucos anos atrás, durante o domínio de seu pai, a Revolta dos Turbantes Amarelos¹⁴ enfraqueceu a sua dinastia que já estava na beira da destruição.

O cansaço pesa em cada parte do corpo do imperador como se a força da gravidade estivesse maior. Liu Han decide dormir. Ele se levanta e percebe a presença de Jun Long em um canto da sala, a fraca iluminação fez o quieto marechal ser ocultado nas sombras.

— Oi, Jun Long — o marechal abaixa um pouco o rosto e suspira, sem o responder — Está tudo bem?

O silêncio persiste… Entretanto, após uma pequena pausa, Liu Han sente uma adaga atravessando o seu abdômen, uma, duas, três, quatro, cinco, seis vezes.

O carmesim escorre por suas vestes e domina a imaculado coloração negra dela. O que dói não é a sensação da lâmina atravessando a carne dele, é saber que o assassino é aquele que ele considerava um pai, o único do império que Liu Han havia entregado a sua valiosa confiança e o único que o ofereceu uma chama de calor na congelante solidão que ele sente desde quando assumiu o trono.

Lágrimas escorrem dos olhos do imperador e forças dele esvaem-se, o fazendo se reclinar em Jun Long. Seu rosto se apoia um pouco abaixo do ombro do general e os últimos suspiros de sua vida são encerrados.

O calor do sangue aquece a mão de Jun Long e ele sente-o escorrendo entre seus dedos, da mesma forma que escorreu a vida de seu garoto. Onde a ganância o trouxe? Lágrimas descem de seus olhos e sua respiração acelera cada vez mais. Ele guarda a adaga e abraça Liu Han, como se de alguma forma pudesse trazê-lo de volta.

◇◇◇

A insistente luz do sol persiste em entrar pelos vãos das cortinas que cobrem as janelas do quarto da imperatriz, iluminando levemente as densas trevas que a cercam. Ela apenas se esconde embaixo dos cobertores, ocultando as suas lágrimas. Se passaram apenas alguns dias desde o seu casamento, nenhuma chance de criar uma família ao lado de seu amado foi concedida a ela e a jovem já está viúva.

Liu Meiying escuta um ruído de passos aproximando-se da porta e vira de costas, em sua cama, sem dizer nada, porque já ordenou que ninguém deveria entrar em seu quarto.

— Licença, podemos conversar? — ela se acalma ao ouvir a gentil voz de seu pai.

— Entre, está destrancado.

Liu Meiying levanta-se e se senta na beira da cama enquanto ele caminha na direção dela. Ela seca seus olhos, no entanto, é em vão, porque é incapaz de vencer as lágrimas. Quando Jun Long chega perto de sua filha, ela estende os braços, desejando aproximar-se, e ele se senta ao lado dela. Liu Meiying deita-se no colo do pai dela, chorosa. E sem saber o que falar para a sua filha, ele apenas faz carinho nos cabelos dela, sem proferir nenhuma palavra.

— Fique aqui comigo.

— Eu ficarei.

— Papai, o senhor sabe por que ele morreu? — diz na esperança do marechal possuir informações devido à posição dele.

— Não — a garota imediatamente reconhece que é mentira, não é necessário o conhecer bem, apenas está extremamente óbvio.

— O que o senhor sabe?

— Nada.

— Até uma criança saberia que estás mentindo.

— É melhor você não saber o que aconteceu.

— Entendi, todavia, possuo o desejo de te defender dos rumores. Pouco depois de quando avisaram-me, escutei algumas servas sussurrando entre elas que o senhor era o culpado e desejava me fazer ser uma imperatriz marionete¹⁵, certamente é isso o que a maioria está comentando no palácio e logo estarão comentando no império todo!

— Não se preocupe, é desnecessário envolver-se nesse assunto trivial — ele respira um pouco ofegante.

— Não é trivial.

— Perdoe-me.

— Pelo quê? O senhor está bem? — Ela levanta sua mão para o rosto de seu pai e sente lágrimas molhando seus dedos.

— Apenas não defenda quem é culpado.

Liu Meiying arregala seus olhos e se levanta, afastando-se de seu pai sem perceber exatamente para onde está indo. Ela tropeça nos tapetes e seu equilíbrio esvai-se, entretanto, não cai.

— Se preferir, eu irei sair.

— É verdade mesmo? É verdade que foi o senhor? — Sua voz é chorosa.

— Sim.

— É verdade?

— Sim.

— Sério?

— Eu não usaria uma mentira tão cruel contra você. 

— Se for verdade, não seria melhor estrategicamente assassiná-lo depois para evitar que suspeitem de ti?

— Poucos anos já seriam o suficiente para ele estabelecer seu governo, e tenho certeza de que, se isso acontecesse, eu não poderia derrotá-lo.

— Eu desejo ficar sozinha — diz, sentando-se no chão e abraçando suas pernas.

Jun Long seca suas lágrimas, ajeita a postura e sai. Ele não deseja revelar ainda mais, entretanto, possui o conhecimento de que cederia aos questionamentos de sua filha. Ela se entristeceria imensamente ao descobrir que seu pai também está por trás do assassinato do antecessor de Liu Han, Liu Zhao.

Ele manipulou tudo o que fosse necessário para torná-la imperatriz ainda em tenra idade. Jun Long é o responsável por permitir que Zhu Yin invadisse o palácio e assassinasse o imperador, fingindo-se de incompetente. Depois de Liu Han terminar o trabalho de colocar sua filha no trono, ele também o assassinou, dessa vez, sentindo o sangue dele escorrer em suas mãos.

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Notas de rodapé:
¹⁴Uma revolta camponesa contra a Dinastia Han Oriental que aconteceu entre 184 dc e 205 dc, os rebeldes foram derrotados, entretanto, as consequências foram desastrosas.
¹⁵Termo utilizado para crianças/adolescentes que estão no trono, entretanto,  são controlados por algum adulto que detém o real poder.

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