• capítulo um: sozinha.

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Dois meses e quatro dias.

Há dois meses e quatro dias eu perdi o sentimento de solidão. Há dois meses e quatros dias atrás descobri que existia alguém além de mim em minha vida. Há dois meses e quatro dias atrás eu conheci a amizade, a dor e o amor, mesmo que não fosse comigo, mesmo que fosse uma mera espectadora. Há dois meses e quatros dias atrás eu me tornei a espectadora. Há dois meses e quatro dias atrás eu aceitei o combate e o assisti inteiramente através de uma tela.

Há dois meses e quatro dias atrás Hannah Donfort enviou meu número de celular para seu namorado como um pedido de socorro. Há dois meses e sete dias atrás Hannah Donfort desapareceu.

Dois meses e quatro dias.

E mesmo assim, o tempo de um dia e algumas horas pareceu demorar mais do que todo o tempo em que vivenciei aquele combate imensurável, onde sorri, chorei e amei. Um dia e algumas horas atrás assisti um dos meus novos melhores amigos, denominado a tal cargo tão importante em minha vida há dois meses e quatro dias atrás, morrer diante de meus olhos.

Richy estava morto.

E como uma espectadora, eu assisti isso acontecer.

Eu sempre odiei o sentimento de preocupação. O amargo intoxicando a garganta, ácido descendo ao estômago banhando os órgãos vitais ao suco do desespero, corroendo a sanidade, transformando em líquido tão venenoso quanto a sensação de pavor derramando suas doses nocivas em cada canto do sistema nervoso, conhecia tudo isso como uma velha amiga, todas aquelas sensações. Doía. Sabia disso, tanto que não desejava nem para o meu pior inimigo e acho que por conta disso sempre preferi a solidão, onde não existia inimigos, mas, consequentemente, também não existiam amigos. Não existia ninguém.

Não existiu ninguém que me acolhesse enquanto eu gritava por três minutos inteiros sem cessar. Não existiu ninguém que me calasse, abafasse o sufoco do clamor por misericórdia, me abraçasse e encerrasse a vídeo-chamada em andamento enquadrando o céu claro, em contraste com as árvores secas e escuras, e nada mais além disso, enquanto lágrimas golpeavam meu rosto como labaredas incessantes, queimando, machucando, derretendo as camadas da pele até chegar ao sangue, o cuspindo para fora.

"Richy, acorda. Richy, acorda. Richy, por favor, acorda!"

"Me responda. Me responda. Me responda."

Nada.

Assim como ele tirou Hannah de Thomas, Cleo, Jessy, Dan e Lily, ele tirou Richy de mim. Mas ao contrário de Richy, ainda havia esperanças para ela.

Não havia esperanças para Richy, não existia a possibilidade de encontra-lo, de abraça-lo, de toca-lo, sentir a graxa sujando os dedos engrossando a textura de sua pele e então ter a oportunidade de fazer uma piada sobre isso. Ele não estava mais ali, não estava em Duskwood, não escutaria sua risada e nem suas piadas sem graça de mecânico velho.

Depois de dois meses e quatro dias sem me sentir sozinha, pela primeira vez tive uma recaída quando essa sensação aflitiva encontrou de volta o seu abrigo na boca do meu estômago e no vazio da minha mente.

Saber que quando pisasse os pés em Duskwood daqui cinquenta e dois minutos não o encontraria acabava com qualquer projeção que minha mente poderia criar.

O meu nome é Cecily. Sempre odiei que me chamassem de Cecy porque nunca ninguém me chamou assim, nunca tive amigos que o fizessem, então dessa lembrança, de que eu vivia apenas com a solidão, nascia o ódio. Jessy foi a primeira a me chamar de Cecy. Eu também já fui chamada de Sra.X, quando ainda era uma pessoa desconhecida para o meu futuro melhor amigo que hoje não está mais comigo. Boo era recente, eu nunca entendi muito bem, mas a sensação de formigamento adormecendo as arestas de meu rosto através de um sorriso me fez aceitar isso de bom grado quando fui chamada dessa forma pela primeira vez por Dan.

afterlife • jake donfort/duskwoodOnde histórias criam vida. Descubra agora