Capítulo 15. Uriel

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CAPÍTULO 15 - Uriel

Analiso o interior do antiquário que me chamou atenção em torno da quinta volta por essa avenida longa e meio movimentada, a vitrine um pouco empoeirada com marcas aleatórias sobre ela.

Não sei exatamente por qual razão escolho entrar no estabelecimento, porém quando noto já estou fechando a porta com um sinete suspenso no topo atrás de mim. Tento enxergar melhor na luz baixa do salão único e uma senhora um tanto velha sorri para mim, fechando o grande e igualmente velho livro que folheava atentamente.

De longe consigo ver que é uma obra escura, pesada e... velha.

Meus olhos não se desgrudam da capa preta que consigo ver melhor ao me aproximar do balcão que a mulher está, o fundo da minha mente sinalizando algo específico e chamando Zadkiel sem que eu me preocupe em fazê-lo conscientemente.

– Olá, querida. Em que posso ajudar? – Pondo uma mão sobre a obra que me suga a atenção indiretamente após perceber que a encarava profundamente, se levanta, posicionando o corpo menor que o meu em frente ao móvel.

– Vim apenas conhecer a loja. Posso dar uma olhada?

Murchando de forma perceptível, a mulher assente, indicando que eu fiquei à vontade. Volta para sua cadeira acolchoada, puxando o livro antigo que emana uma certa energia especial que crispa minha testa com curiosidade.

– Qualquer coisa me chame, sim?!

Aponto meu queixo em sua direção e circulo pelo lugar sem pressa para ir a lugar algum. Meu medo de quebrar algo deixa minha mão bem leve ao tocar nas coisas. Não possuo dinheiro para pagar e, considerando o desespero da senhora em vender alguma coisa, se eu ao menos suspirar forte demais sobre um dos relógios pendurados na parede ao lado...

Contudo, não importa quanto eu me esforce para olhar outros objetos, aquele livro é o que me chama.

Mesmo que rode um brinquedo de carrossel sem um cavalinho ou dedilhe uma mini harpa com tons divinos, meus olhos grudam naquele calhamaço com tanta força que me coço para não buscá-lo.

O barulho estrondoso do telefone tocando em meio ao silêncio me faz pular de susto, quase derrubando o globo de neve levemente trincado que balançava para ver os floquinhos caindo.

– Alô? – a senhora, agora de pé para alcançar o aparelho atrás de si, inclina a cabeça para baixo com o fone encostado em sua orelha para ouvir e conseguir me ver ao mesmo tempo.

Murmurando algumas palavras, depois de uns cinco minutos que estive encarando-a fixamente, o globo rolando entre meus dedos distraídos, vejo-a respirar fundo e encaixar o telefone de volta no gancho.

Coloco o enfeite gasto em seu lugar, em uma das diversas prateleiras descascadas do antiquário, pegando um porta jóias com uma bailarina dentro que não mais tocava ou rodopiava parada. O olhar analisador da mulher pesando sobre mim e sobre cada movimento que faço.

– Ei, menina.

Olho-a novamente, uma sobrancelha erguida sugerindo que fale.

– Vou até o estoque ali atrás – Aponta para a porta também atrás de si, ao lado do telefone pregado à parede, pondo as mãos suavemente enrugadas nos quadris finos – Nós temos câmeras, ouviu? Se algo sumir, o alarme soa e eu chamo a polícia.

Ergo os olhos para as duas câmeras mencionadas e o quadrado branco que de fora da loja não é possível ver, disposto ao lado da porta de entrada. O alarme, creio eu.

– Não me agrada ser detida por usurpar uma luminária de duzentos anos que não saberia onde dispor, pode deixar.

De certa forma agradada pela minha resposta, assente e empurra o livro que lia para fora da minha visão. Alternando o foco entre mim e ele, se enfia rapidamente no estoque, a porta se fechando automaticamente após sua partida.

Coloco cuidadosamente a caixinha onde esteve, dando corda no carrossel ao lado dela que toca assim que me afasto em direção ao livro uma musiquinha um tanto arrepiante.

Fito profundamente a porta pela qual a dona da loja passou, atenta aos mínimos movimentos que ela possa fazer e barulhos se aproximando que serão meus alarmes próprios, mesmo que o toque fino dos acordes minúsculos do carrossel sirva de música de fundo.

Esse livro é estranho e preciso saber o porquê...

Escorrego a mão ainda de olho na madeira que separa nós duas e quando enfim encosto na capa surrada, sinto uma espécie de choque reverberar das pontas dos dedos até o ombro, uma sensação ruim preenche meu interior na mesma hora.

Solto um grunhido contido ao segurar meu braço e massageá-lo, tentando afastar a leve dormência que o tomou, coçando dentro das veias como formigas subindo e descendo pelos músculos retesados.

– Com toda certeza há algo de errado com esse livro – sussurro nervosa, a porta ainda fechada e nenhum som sendo detectável por perto.

Levo a outra mão para o calhamaço, pronta para mais um choque que não vem. Dessa vez é como pegar um objeto qualquer, então consigo erguê-lo até a parte de cima do balcão e interpretar sua capa escura.

Cerro os olhos quando não encontro nenhum título, nenhum sinal do que se trata, apenas a imagem de uma nuvem com um tom de vermelho bem falhado está na base da capa. O couro que embala tudo está ressecado e quebradiço por conta do tempo que aquilo fora feito, as páginas que se abrem com um estalo na lombada são finas e cheias de desenhos com as bordas borradas.

Com anotações feitas claramente a mão, algumas manchas de erros cometidos na escrita são constantes em cada parágrafo e as bordas sempre trazem um desenho minúsculo de uma estrela de várias pontas.

Começo a ler frases com o passar das folhas, meu braço ainda pendendo e formigando ao meu lado.

"E assim encontrará o acalento nos braços fortes de nosso senhor"

"... totalmente inebriados pelo doce odor do sangue recém adquirido"

"Fortes serão aqueles que possuírem dentro de si um dos servos do nosso senhor"

"O ritual deve conter os seguintes objetos e carnes..."

– É um livro de pactos...

Por estar focada nos absurdos profanos da obra que mantenho em mão, meu alarme falhou. Os passos da mulher não me chegaram aos ouvidos e a porta se abrindo sem pressa muito menos, apenas quando sua voz soou três níveis mais baixos que antes e um cheiro que queimou minhas narinas de podridão me tonteia que retiro a atenção das páginas.

Com os olhos engolidos por escuridão e a boca salivando em meio a seu rosto retorcido em necessidades, a dona do antiquário mais escuro do que antes profere:

– E você não deveria estar tocando nele, anjo.

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⏰ Última atualização: Dec 14, 2023 ⏰

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