Capítulo 01: Fevereiro.

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SORAYA

É preciso dizer uma coisa sobre o desespero: ele deixa a cabeça da gente muito mais aberta. Consigo ver muitos lados bons neste apartamento. Se eu esfregar bem, o mofo multicolorido na parede da cozinha vai desaparecer, pelo menos por um tempo. O colchão nojento pode ser substituído por outro baratinho. E a gente pode muito bem argumentar que os cogumelos crescendo atrás da privada dão certo frescor ao ambiente.

Grazy e Dean, no entanto, não estão desesperados nem tentando adotar uma postura positiva. Eu descreveria a expressão deles como "pasma".

— Você não pode morar aqui. — foi Grazy quem disse isso. Ela está de pé, os calcanhares grudados e os cotovelos junto ao corpo, como se tentasse ocupar o menor espaço possível para protestar contra o fato de estar aqui.

Seu cabelo está preso em um coque baixo, já com os grampos que facilitam a colocação da peruca que ela usa no tribunal. Seu semblante seria cômico se no momento não estivéssemos discutindo minha vida.

— Tem que ter outro lugar que caiba no seu orçamento, Sô —diz Dean, preocupado, levantando-se depois de examinar o armário onde fica o aquecedor.

Ele parece ainda mais descabelado que de costume, mas talvez fosse só a teia de aranha presa em sua barba.

— Este é pior ainda do que o que a gente viu ontem à noite.

Olho em volta, procurando o corretor. Por sorte, ele está longe demais para ouvir, fumando na "varanda" (ou melhor, no telhado bambo da garagem do vizinho, que definitivamente não foi construído para que alguém andasse em cima).

— Não vou mais me dar o trabalho de ver outro buraco que nem esse — diz Grazy, consultando o relógio. São oito da manhã. Ela precisa estar no Tribunal Real de Southwark às nove. — Deve ter outra opção.

— A gente pode dar um jeito de ela ficar no nosso — sugere Dean, pela quinta vez desde sábado.

— É sério, dá para parar com isso? — retruca Grazy. — Não é uma solução a longo prazo. E ela teria que dormir de pé para caber em algum lugar.

Eu realmente preferiria ficar aqui a dormir no chão do apartamento minúsculo e ridiculamente caro que Dean e Grazy compraram no mês passado. Eles nunca moraram juntos, nem quando estávamos na faculdade. Tenho medo de que isso acabe com a amizade dos dois. Dean é bagunceiro, distraído e tem uma capacidade inacreditável de ocupar espaço, apesar de ser baixinho. Já Grazy passou os últimos três anos morando em um apartamento sobrenaturalmente limpo, tão perfeito que parecia gerado por computador. Não sei como esses estilos de vida vão coexistir sem que ocorra uma explosão em Londres. Mas a grande questão é que, se for para dormir no chão, posso simplesmente voltar para o apartamento de Jonas.

E, às onze da noite da última quinta-feira, tomei de uma vez por todas a decisão de que essa não é mais uma opção. Preciso continuar minha vida e me comprometer com outro lugar para não ser obrigada a voltar para lá. Dean esfrega a testa, desabando no sofá de couro encardido.

— Sô, eu posso te emprestar um pouco...

— Não quero seu dinheiro — digo, mais ríspida do que pretendia. — Olha, eu quero muito resolver isso ainda esta semana. É este lugar ou o apartamento compartilhado.

— A cama compartilhada, você quer dizer — lembra Grazy. —Posso saber por que você tem que fazer isso agora? Não que eu não esteja adorando essa sua decisão. É que, da última vez que conversamos sobre isso, você estava sentadinha naquele apartamento, esperando aquele-que-não-deve-ser-nomeado se dignar a aparecer.

Teto para duas - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora