Capítulo 09

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Soraya

Certo, aqui estou. No cais congelante. Em "roupas neutras com as quais eu possa trabalhar", segundo Katherin, que está sorrindo com ironia para mim, o vento jogando seu cabelo loiro avermelhado no rosto enquanto esperamos o navio baixar a ponte, ou virar as três velas para o vento, ou o que quer que esses navios façam para que as pessoas subam a bordo...

— Você tem um corpo de proporções perfeitas para esse tipo de coisa — diz Katherin. — É minha modelo favorita, Soraya. É sério, vai ser um arraso.

Ergo uma das sobrancelhas e olho para o mar. Não vejo a grande seleção de outras modelos que Katherin tem para escolher. E, com o passar dos anos, já me cansei um pouco das pessoas falando das minhas "proporções". Acho que o que ela está dizendo mesmo é: "Nossa, você tem um corpão, mas não é muito gorda!", ou "Parabéns por ser bunduda !"

— Você é o tipo de mulher que os soviéticos apreciavam —continua Katherin, ignorando minha sobrancelha erguida. —Sabe, aquelas dos cartazes sobre mulheres que trabalhavam na terra enquanto os homens lutavam, esse tipo de coisa.

— E essas mulheres soviéticas usavam muito crochê? —pergunto, irritada.

Está chuviscando e o mar parece muito diferente estando em um cais agitado como este. É muito menos glamoroso do que quando estamos na praia. Na verdade, parece apenas uma grande banheira de água fria e salgada. Gostaria de saber se a diretora de direitos autorais está quentinha agora, na reunião sobre o alcance internacional dos lançamentos de primavera.

— Talvez, talvez — pondera Katherin. — Boa ideia, Soraya! O que você acha de um capítulo com a história do crochê no próximo livro?

— Não — respondo, firme. — Isso não vai atrair mais leitores. — com Katherin, é necessário matar as ideias no berço. E estou certa desta vez. Ninguém quer histórias — As pessoas só querem ideias para uma nova peça de crochê que possam dar para o neto babar.

— Mas...

— Só estou informando você sobre a brutalidade do mercado, Katherin. — é uma das minhas frases favoritas. O bom e velho mercado, sempre ali para servir de culpado. — As pessoas não querem histórias em livros de crochê. Querem fotos bonitas e instruções fáceis.

Depois que todos os documentos foram conferidos, subimos abordo. Não dá para saber onde o cais acaba e o barco começa. É como entrar em um prédio e sentir um leve enjoo, como se o chão estivesse se movendo sob nossos pés. Achei que fôssemos ter uma recepção diferente, mais divertida, por sermos convidadas especiais, mas estamos apenas caminhando com todo mundo. E todos são pelo menos vinte vezes mais ricos do que eu, claro, e estão muito mais bem-vestidos. É um navio pequeno para um cruzeiro — tipo, só do tamanho de Portsmouth, não de Londres. Somos empurradas com cuidado até um canto da "sala de entretenimento" para esperar o momento de começar. Vamos montar tudo depois que os passageiros tiverem almoçado. Ninguém traz almoço para nós. Katherin, claro, levou os próprios sanduíches. São de sardinha. Ela me oferece metade, empolgada, o que é muita gentileza. Por fim, o ronco em meu estômago fica tão alto que aceito a derrota e pego um pedaço.

Estou inquieta. A última vez em que fiz um cruzeiro foi para visitar as ilhas gregas com Jonas, e eu estava com os olhos brilhando de tanto amor e hormônios pós-sexo. Agora, encolhida em um canto com três sacolas cheias de lã e agulhas de tricô e crochê, acompanhada por uma ex-hippie e um sanduíche de sardinha, não posso mais negar que minha vida está indo de mal a pior.

— Bom, quais são os planos? — pergunto a Katherin, mordiscando a casca do sanduíche. O sabor de peixe não é tão ruim na borda do pão. — O que eu tenho que fazer?

— Primeiro vou mostrar como tirar medidas — explica ela. —Depois vou dar dicas básicas para iniciantes e usar minhas peças já prontas para mostrar como criar uma roupa perfeita! E, claro, vou dar minhas cinco dicas principais para medir enquanto tricota.

"Meça enquanto tricota" é um dos slogans de Katherin. O bordão ainda não pegou. Por fim, quando chega a hora de começarmos, conseguimos reunir uma boa quantidade de ouvintes. Katherin sabe fazer isso — ela provavelmente praticou muito em protestos e coisas assim, no passado. É um grupo formado por senhoras e seus maridos, mas há algumas mulheres mais novas, de vinte ou trinta anos, e até dois homens. Estou muito animada. Talvez Katherin tenha razão e o crochê esteja mesmo entrando na moda.

— Uma grande salva de palmas para minha assistente glamorosa! — diz Katherin, como se estivéssemos fazendo um show de mágica.

Inclusive, o mágico parece um pouco ofendido no outro canto da sala de entretenimento. Todos aplaudem como esperado. Tento parecer alegre e pronta para o crochê, mas ainda estou com frio e me sinto feia com roupas neutras — calça jeans branca, camiseta cinza e um cardigã rosa lindo que achei que tinha vendido no ano passado mas redescobri no meu guarda-roupa hoje de manhã. É o único elemento colorido da roupa e sei que Katherin vai...

— Tire o cardigã — diz ela, já me despindo.

Isso é muito humilhante. E me deixa com frio.

— Estão prestando atenção? Guardem os celulares, por favor. A gente sobreviveu à Guerra Fria sem entrar no Facebook a cada cinco minutos, né? Hum? Isso mesmo, um pouco de perspectiva para todos! Guardem os telefones!

Tento não rir. Isso é típico da Katherin — ela sempre diz que lembrar a Guerra Fria assusta as pessoas. Começa a me medir — pescoço, ombros, busto, cintura, quadril —, e eu percebo que minhas medidas estão sendo tiradas na frente de um grupo bem grande de pessoas, o que me dá ainda mais vontade de rir. Clássico, né? A gente não pode rir e, de repente, é o que mais quer fazer. Katherin me lança um olhar severo enquanto mede minha cintura, falando sem parar sobre pregas para criar "espaço suficiente para a bunda" e, sem dúvida, sentindo que meu corpo está começando a tremer com as risadas contidas. Sei que preciso ser profissional. Sei que não posso cair na gargalhada — isso vai prejudicar Katherin. Mas... olhe só para mim. Aquela senhorinha ali acabou de anotar a medida da minha coxa no caderno. E aquele cara ali do fundo se parece...Aquele cara do fundo... Aquele...É Jonas .Ele vai embora quando percebe o meu olhar e se mistura à multidão. Mas, antes de desaparecer, me encara. O gesto faz uma onda de choque passar por mim, porque não é um olhar comum. É de um tipo muito específico. Do tipo que faz você ficar presa ao momento pouco antes de jogar vinte libras na mesa e sair correndo do bar para beijar a outra pessoa no táxi a caminho de casa, ou ao momento em que você pousa a taça de vinho e sobe a escada para ir para cama. É um contato visual sexy. Os olhos dele estão dizendo: "Estou despindo você com os olhos. " O homem que me deixou meses atrás, que não atendeu nenhuma ligação minha desde então, cuja noiva provavelmente também está neste cruzeiro... está olhando para mim desse jeito. E, nesse momento, me sinto mais exposta que qualquer quantidade de senhorinhas com cadernos poderia me fazer sentir. Sinto-me totalmente nua.

Teto para duas - Simone e SorayaOnde histórias criam vida. Descubra agora