Pelos próximos dois meses na embarcação em que nós estávamos, anotei tudo o que me era interessante. Qualquer coisa que fosse me tirar do tédio ou me distrair da realidade, então, aprendi a replicar os elementos do meu dia a dia por meio de ilustrações, rabiscos e desenhos.
Na verdade, esses dois meses foram muito difíceis para todos nós. Houve muitas mortes por fome, doença e desnutrição, inúmeras vezes eu comia folha de papel para enganar meu estômago de que não havia comida. Aquilo que eles jogavam e recebíamos eram coisas estragadas, uma mãe estava desesperada tentando amamentar seu filho recém nascido que comeu as sobras lá de cima.Tanto ela quanto a criança não sobreviveram, a mulher morreu por infecção e a criança por desnutrição.
Meu tio conseguiu manter a sanidade riscando as paredes do barco e puxando os outros para cantar cantigas de roda e canções de seus antigos lares. Meu irmão ficava com muito medo, não saia do meu lado de jeito algum. E eu as lágrimas escorriam pelo meu rosto constantemente, me sentia perdida sem o resto da minha família. Perguntando todos os dias como seus dias irão se suceder? Já não aguentava mais a promessa de um novo mundo e o sonho que parecia ter esperança estava mais para pesadelos de uma noite sem fim.Dois dias antes de embarcarmos, senti um cheiro horrível! Era o pior cheiro que meu nariz podia respirar!
Mas eu não sabia qual era a fonte do mal odor, olhava para todos os cantos, me levantava e procurava. Não havia nada! Como se o ar estivesse estragado.
Quando atracamos o cheiro só parecia pior e aumentava ainda mais. Assim que descemos da embarcação eles nos arrumaram em fileira e um padre bem vestido veio ao nosso encontro. Eu estava muito animada! Podia ser a nossa salvação. Ele podia nos libertar dessas correntes.
No entanto, com a figura religiosa só vinha trazido um pote com água e algo parecido um graveto. Era um batismo, eles mudaram os nomes de todo mundo, a maioria era "Francisco", outros eram "Judas", "Simão", "Saulo" e as mulheres recebiam o nome de "Inês", "Maria Madalena", "Conceição" dependendo do dia. Quando chegou a minha vez eles me chutaram, colocaram de joelhos e olharam no grande livro, pelo que eu entendi (não entendo muito o idioma deles) eles não gostavam do meu nome. Me colocaram como "Debora" e assim jogaram água com gosto estranho na minha cara e passaram para os próximos. Meu irmão e meu tio também tiveram nomes diferentes, "Lucas" para meu tio e "Kleber Henrique" para Enam.
Após tudo isso, foram vender a gente no mercado, nos espancaram, amarraram com cordas e trataram-nos como se fossemos nada!Minha esperança de viver já tinha acabado! não conseguia olhar na cara de ninguém, muito menos acorrentada dos pés ao pescoço. Não havia corrente para todos, então alguns foram amarrados com cordas de todos os tamanhos e todos os tipos de nó.
Uma família de um Grande fazendeiro se interessou por algumas moças da minha idade, por crianças e homens com porte grande. No final ele escolheu três moças, incluindo eu.
Entrei em choque e desespero, me joguei no chão e gritei o mais alto que meus pulmões me permitiam. Eu tentava chegar no meu irmão e no meu tio, mas os criados do Barão me arrastaram pelas correntes enferrujadas. Felizmente meu tio se soltou da corda e se ofereceu em meu lugar como homem de carga. De bom grado e sorriso malicioso, o fazendeiro aceitou a proposta e foi reivindicar seus direitos com o vendedor.
Com sua grande influência, ele acabou levando mais escravos, incluindo meu irmão, eu e mais algumas moças e crianças de nossas idades. Não posso dizer que não adiantou, mas senti que havia ganhado por estar perto de Enam.
Nos colocaram em carroças e viajamos até suas propriedades.
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As crônicas de Alika
Historical FictionAlika, seu irmão e tio são levados em um navio negreiro no ano de 1665 para o Brasil. Ela precisa ser forte para realizar uma revolução e libertar todos os seus semelhantes.