Capítulo quatro

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Amanheci com os olhos abertos, vi o nascer do sol completo. Nunca tinha ficado assim... Essa situação é tão bizarra, não senti sono e fui trabalhar desse jeito.
Quando cheguei na cozinha avistei Inês, ela estava lavando os pratos do café da manhã com muito afinco. Nós costumamos não comentar nenhuma palavra, mas pelo olhar, diria que ela está me perguntando onde eu estava. Eu respondi olhando para baixo e para o outro lado como um sinal de "passeando pela região". Seu suspiro me arrepia até a espinha, e imediatamente procuro tarefas para realizar. Peguei uma vassoura e comecei a varrer a poeira que se acumulava ali, passei a manhã toda varrendo o pátio, cozinha e esfregando o chão.

Assim que terminei, lavei minhas mãos e voltei à cozinha para ajudar Inês e as outras senhoras a prepararem o almoço. Me aproximei vagarosamente e comecei a cortar os legumes, não pude notar o tom das conversas que ali circulavam:
- Você viu o novo escravo de olhos verdes? - Maria comentava com suas colegas de cozinha.

- Deve ser um mestiço! - Elvira desdenha.

Ele veio perguntando sobre a figura de um anjo nessa manhã, porém não descreveu com clareza. A cabeça dele estava enfaixada com um lenço igual ao nosso. Vocês sabem o que quer dizer?  - Maria responde.

- Espero que ele não seja um sem vergonha esperando uma oportunidade! - Elvira

- Não, Elvira! É amor jovem!

Aí! Meu dedo... - Entrei em pânico por dentro, acabei cortando meu dedo anelar esquerdo, acho até que meu coração errou a batida.

- Cuidado Alika! Você ainda vai precisar desse dedo caso arranje um marido branco - Elvira lança um olhar de desconfiança.

- Desculpa - Eu olho para a Inês esperando alguma reação, que só continua de costas fazendo suas tarefas.

Elvira é uma fofoqueira, se tem uma pessoa que eu faço questão de não encarar, com certeza é ela. Só comenta da vida dos outros porque não acontece nada de interessante na vida dela. Se eu pudesse...
Respiro fundo e paro de pensar nisso, não me adianta nada ficar com raiva por algo que é culpa minha.

Esse sangramento não vai parar tão fácil... Vou caminhando em direção ao riacho para lavar meu ferimento, conheço as rotas que não precisam encarar os homens de espingarda que vigiavam os trabalhadores de carga. Ao caminhar pelo caminho seguro, vejo Kiara brincando num riacho próximo.
Eu não sei dizer se ela realmente faz parte dos escravos da família Laurindo, há tantas fazendas e grandes latifúndios, alguns eram distinguindos pelas marcas de queimadura no ombro e outros pelas correntes fabricadas. A única coisa que conectava tudo isso era essa floresta cheia de riachos e bastante mato alto.

Me agachei perto da margem e mergulhei meu dedo para estancar o sangramento, não era tão profundo. Mesmo assim, dói muito...

Enquanto estava ocupada com meu ferimento, galhos se rompem atrás de mim, me deixando em estado de alerta. Instintivamente eu virei de costas para o rio e me abaixei o mais rápido que consegui, senti que aquele poderia ser meu fim. Uma silhueta voraz surge do matagal em minha direção e assim que ela chega próximo o suficiente avançando em cima de mim, eu preparo um chute e respiro fundo para não entrar em pânico. Assim que executei o golpe, lancei a silhueta para a água e mergulhei na moita mais próxima.
Quando a criatura voltou para a superfície para buscar oxigênio inexistente de seus pulmões, percebi que era Enam, que logo disse:
-  Alika! Você não sabe brincar? - Ele nada cachorrinho cuspindo água e limpando o rosto ao chegar na margem.

- Enam! O que você está fazendo aqui? É perigoso demais estarmos juntos. - Eu me surpreendo e vou em direção a ele.

- Perigoso? Mana, o Grande fazendeiro está na propriedade esse mês, você não pode passar tanto tempo fora. Ainda mais porque eles vão repetir a festa da colheita. Eles vão dobrar o número de senhores de engenho e vai ficar impossível esses passeios que você faz durante o dia. O que tem acontecido com você?

- Repetir, como assim? Isso seria trabalhar em dobro! - Meu nível de preocupação aumenta a cada atrocidade que é projetada com aquela língua afiada.

- Precisamos voltar pra casa, está escurecendo e você não trouxe a bendita lamparina. - Enam me puxa pelo braço em direção ao caminho pra casa.

- Espera, Enam, se eles vão dobrar os senhores de engenho então isso significa que muitos de nós não vão ter comida suficiente e muito mais escravos serão mandados pra cá, o que também significa que não poderemos baixar a guarda, caso alguém descubra algo relacionado a segurança que fazemos o nosso tio e qualquer um de nós vai pro Pelourinho ou é executado a tiros... Que horas são? Não me diga que estamos no toque de recolher.

Escutamos um barulho de vento rasgando o ar e perto do meu pé uma flecha finca o chão com uma força brutal. Enam olha pro céu em desespero e vê o sol se escondendo atrás das montanhas a cada segundo que nós andamos:
- Depressa, mana! Não podemos deixar que eles percebam que saímos. - Enam acelera o passo sem soltar minha mão.

Estava ficando tarde de mais, Enam olhava para todos os lados tentando encontrar pontos de luz que pudessem iluminar caminho. O desespero se tornava mais real, pois nunca ficamos tanto tempo fora da plantação e da casa onde a gente ficava.
- Alika, o que vamos fazer? Todos os caminhos parecem iguais.

- Respira fundo Enam, vamos pensar em alguma coisa rápido.

Meu raciocínio não funciona tão rápido, muito menos sendo perseguida por pessoas que querem matar a gente no escuro, mas a ideia que eu tive parecia ser a mais lógica naquela hora:
- Pega aquele cipó e amarra na cintura, a gente vai subir na árvore e pular no rio! - Eu amarro na cintura dele e na minha.

- O que?! Alika, cavalo mordeu tua cabeça?! Eu não sei nadar direito e não sabemos o que tem na correnteza de noite!

Mais flechas passam de raspão perto de nós. E podíamos ouvir o capim sendo pisoteado por passos pesados e por ferraduras de cavalos, eu olho para as flechas e depois para o matagal e tomo coragem para correr e pegar impulso para subir na árvore:
- CORRE E SOBE! - Nós pegamos impulso e subimos na árvore ainda tropeçando, porém com êxito.

O lugar era um completo breu, eu não enxergava nenhum palmo à minha frente, no entanto, sabia de quase todas as coisas que se situavam lá, e tinha certeza de que aquele rio deságua perto da plantação. Quando subimos na árvore tivemos a visão do local iluminadas pelas tochas que os caçadores carregavam, não era perfeita, do qual já ajudava a fugir.
Antes de pularmos, meu irmão foi atingido por uma flecha na lateral do abdômen fazendo com que a corda que estávamos usando se rompesse:
- Arg! - Enam sentiu a dor e se desequilibrou caindo na água de imediato.

- Enam! - Eu me jogo com toda força, mesmo não sabendo nadar direito e com a correnteza forte.

Estava desesperada, além de estar escuro, o movimento do rio estava violento. Enam não sabia nadar e estava machucado, gritei o quanto pude e mergulhava com todo o ar que me restava. De repente, minha perna bateu com força num troco de árvore submerso, o que me fez sentir a mão de Enam submersa. Respirei fundo pela boca, tomei impulso no tronco e procurei qualquer toque humano. Um, dois, três minutos e nada; não tinha mais fôlego e quando fui para superfície senti um braço agarrando na minha perna com força, me guiando pela mão, tive certeza de que era ele e fomos para cima. Encostei o corpo dele no tronco que fiz de jangada, ele não me respondia, porém eu escutava sua respiração fraca.
Assim que meu coração voltou ao normal, eu deitei minha cabeça e olhei para o céu  estrelado, agradecida a Deus por ter nos ajudado... Eu pude ver a lua saindo de trás das nuvens o que me deu uma chance de guiar e ver o rosto do me irmão:
- Enam, eu vou sempre te proteger! Não importa no que for...

As crônicas de AlikaOnde histórias criam vida. Descubra agora