Capítulo três

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Durante os anos de 1660 e 1676 aprendi muitos truques com a Inês, desde escapar das filhas do fazendeiro, até onde armazenar comida para os escravos. Eu escrevo hoje por meio dos ensinamentos maravilhosos que aprendi graças a suas habilidades, ela era uma excelente autodidata e uma mulher muito gentil. A gente amava a companhia uma da outra e quando dava sempre trocamos palavras de carinho e proteção, mesmo que curtas.

Quando completei 24 anos, meu cabelo já havia crescido um pouco mais do que ele costumava, pois, muito da minha raiz sofreu cortes e machucados permanentes, meu irmão havia se tornado um rapaz muito esbelto tinha 21 e conseguia carregar mais carga que meu tio, que também envelheceu bem, estava com 33 e com uma cicatriz enorme no rosto, ele ficou cego do olho esquerdo, porque se meteu em uma briga com os homens de pistola do Grande Fazendeiro (pouco tempo eu descobri que o nome dele é Laurindo). Eu fiz duas amigas, incluindo a Inês e mais uma menina nova, o nome dela é Kiara, tem em torno dos 11 e ela é um amor de criança, sempre que eu consigo dou metade do meu prato de comida para ela, pois crianças recebem menos que os adultos. De vez em quando ela olha para mim e sorri, me sinto bem por saber que ela sorri mesmo em um lugar assim, oh doce inocência.

Mas, nem tudo que se torna familiar dura para sempre. Uma noite o Grande Fazendeiro deu um banquete em sua casa para comemorar a grande colheita, muitos senhores de engenho foram visitar a fazenda e até realizar grandes negociações com a família Laurindo. Eu sabia que isso era ruim para a maioria de nós, pois muitos desses senhores desprezavam e torturavam só por diversão os escravos. Então meu tio pediu para conduzir mulheres em gestação, crianças e idosos atrás dos estábulos com as recomendações de ficarem em silêncio, do qual não correr o risco de alguém ouvir. Mesmo sendo propriedades, eles não têm zelo nenhum pela segurança das pessoas que vivem aqui.

Ao cair da noite, evacuamos todos presentes que trabalhavam na casa, a maioria de nós estava em um lugar seguro. Quando a lua atingiu o seu ápice, o banquete foi servido e muitos jovens estavam cortejando as filhas do  Grande Fazendeiro dentro do salão. Para conquistar a atenção de uma das meninas, a de coração mais corrompido, Isobel. Solicitou que um dos rapazes demonstrasse sua coragem a fim de se julgamento for de que ela deve ou não investir seu tempo no rapaz destemido.

Bomani fazia jus ao seu nome, era um grande soldado e estrategista. Alguns de nós realizamos patrulhamento que garantiria a segurança de todos e outros ficavam encarregados de proteger os necessitados.

Nessa noite, eu estava de patrulha escondida em cima de uma árvore. Vi alguns jovens e as meninas indo para o quintal onde geralmente nós ficamos, o que me preocupava era seu estado não sóbrio e as pistolas em suas mãos. Algumas famílias cultivam o costume de passar de geração a geração uma pistola com o sobrenome da família ao primogênito. E aquelas com certeza iriam fazer um estrago enorme em jovens desalmados como aqueles do qual eu observava no alto longe de uma árvore. Assobiei para dar sinal ao meu tio ficar atento, desci da árvore e me escondi perto de uma moita atrás de um tronco. Não era para sair de lá, e muito menos fazer barulho, pelo menor que seja. Meu irmão e eu brincávamos de quem ficava mais silencioso, eu sempre ganhava pois ele tinha uma respiração muito pesada, acredito que tenha algo haver com o seu nariz ou o jeito que respirava. Enfim, era só não fazer barulho e ficar no mesmo lugar.

De repente eu escuto gritos vindo daquele grupo de jovens. Era um jovem negro em um Pelourinho! Seus olhos demonstravam sofrimento e dor profunda, ele não chorava. Não entendi aquele comportamento, com dois tiros em seu corpo, passando de raspão, pois os atiradores estavam bêbados, como não chorar de dor?
Eu observei de longe aquela situação, olhei para meu tio que em resposta para mim (mesmo de longe), balançou a cabeça em sinal de negação para eu não me pronunciar. Respondi positivamente balançado a cabeça obedecendo seu comando...
Assim que alguns deles caíram de sono e outros foram para dentro do salão de banquete. Eu olhei para meu tio esperando uma ordem ou sinal para eu resgatar aquele homem indefeso, ele me aconselhou a não ajudá-lo, pois os homens caídos estavam muitos próximos ao garotos que mesmo caídos de sono estavam com a pistola na mão. Meu coração apertava quando eu escutava o barulho das correntes se mexendo histericamente em busca da liberdade. Então tomei uma atitude.

Andei silenciosamente para perto dele e peguei o terçado ali perto, bati nas correntes até libertar o pobre coitado. Caindo de uma parte alta, amarraram ele no alto dos pés as mãos. Arrastei o corpo dele para um lugar mais afastado, o sangue escorria com muita frequência então tentava cobrir o rastro jogando terra e areia no chão. Foi uma parte chata, eu confesso. Seu corpo era magro e tinha sinais de machucados e costelas à mostra e mesmo assim era pesado de carregar, mas... Quando eu olhei naqueles olhos, cor de esmeralda, senti o vazio em que aquela alma vagante por aquele mundo cruel que mais parecia um purgatório na terra se encontrava. Acredito que a dor e seus ferimentos foi tanta que ele desmaiou, ajeitei o seu corpo em uma posição confortável e peguei um balde e enchi com água limpa, desamarrei a bandana que segurava meu cabelo, mergulhei o pano e limpei sua testa, junto aos ferimentos com todo cuidado. Me assustei com seus gemidos quase inaudíveis de dor, mas sabia que isso era necessário se algum dia ele quisesse ter seu braço direito e pé esquerdo de volta. Com muita dificuldade ele moveu a cabeça em minha direção, me encarando e disse:
- Você é um anjo? - Seus olhos se movimentavam lentamente para abrir e fechar.

Meu coração palpitou por um breve momento, mas não tive coragem de pronunciar uma palavra. Talvez ele fosse um nativo como qualquer outro que odiasse o meu sotaque assim que chegasse em seus ouvidos, engoli a seco e permaneci calada e concentrada em seu ferimento.
- Não esperava encontrar com as imagens que eu via no quarto de minha mãe tão cedo, eu morri? - Ele continuava a delirar com espasmos em suas pálpebras.

Não dei atenção aos seus delírios e amarrei minha bandana no braço dele para estancar o sangue que ainda escorria, aprendi na marra que se alguém perder muito sangue, morre. O motivo pelo qual eu não tenho conhecimento.

Abruptamente, suas mãos se moveram lentamente e tocaram no meu queixo, movendo para o encontro de seus olhos ele me disse:
- Por que me ignoras, anjo? - ele franziu a sobrancelha e fez um biquinho.

Eu fiquei tão envergonhada que corri para longe dali. Parei tudo que estava fazendo, apenas corri o mais rápido que consegui. Meu coração batia feito um louco, mas não era de medo, minhas bochechas estavam quentes e minha respiração estava diferente. Naquela noite, eu não consegui dormir. Só pensei naqueles profundos olhos verdes...

As crônicas de AlikaOnde histórias criam vida. Descubra agora