xi. A Flor que não Cresce

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A biblioteca a acolheu mesmo antes de haver luz no céu. A garota tinha pulado da cama, pegado uma coberta e recuperado o livro caído no chão. Ela tinha meias em seus pés, as chinelas felpudas deixadas em cima do tapete no pé da cama. Aquele caminho, ela podia faze-lo de olhos fechados.

Ela empurrou as portas com facilidade, a iluminação piscou, brilhando em propósito. A lareira não ardia, mas queimava vagarosamente, mandado calor para quem precisasse senti-lo.

Jogando a coberta para o alto, Ali cobriu-se até as pontas dos dedos do pé, abrindo o livro na página que parou. A poltrona a manteve confortável. As horas que tinham que passar, passaram. Mas ela não retornou a sua cama. Alina tinha ainda quatrocentas e quarenta e seis páginas para ler. O que era dormir se ela podia voltar a aquele reino de cinzas e verde?

Seus olhos não piscaram em urgência. Ela existia pelo e para o livro. Prometendo a si mesma que não iria além da próxima mensagem. Desistindo no parágrafo seguinte e repetindo a farsa de que se contentaria com apenas mais um único capítulo. Como se ela pudesse descansar sem a certeza da vida ou morte dele. Como se ela pudesse sonhar sem ter chegado a colina. Como se ela fosse paciente para esperar.

Havia uma guerra naquelas páginas. E Ali seria agonia se uma força a obrigasse se deitar. Que alternativa restava a ela a não ser acompanhar aos soldados para o encontro das tropas? Ela estava descalça e suas meias afundariam na lama, e lá ficariam. A alguns passos, sempre, a garota estava. A leitora não correu de volta para as tendas erguidas as pressas, as tropas avançaram e com elas, sem armadura, lâmina em uma bainha ou altura, ela seguiu.

O sangue, as tripas e os membros decepados, abundantes na solo, invocaram os abutres. Ali, horrorizada, não conseguiu ver o banquete das moscas.

Ela nunca soube do soldado de baixa patente, a quem ninguém deu um nome, que tremia quando a espada que escorregava de posse foi arrancada e nele enfiada.

Os cadáveres, acumulados e mortos, eram tantos, que tiveram suas identidades sobrepostas. Eles foram uma passagem esquecida por quem a leu, curta e apressada. Por eles, a leitora não chorou. Ela não silenciou sua ansiedade para que pudesse fazer uma prece pelos falecidos. Ali virou a página e aguardou a vida do próximo soldado ser roubada por uma lâmina qualquer suja de sangue.

A menina respirava normalmente, como respira aquele que não tem as suas costas a morte. Isso não mandou para longe o medo dela pela vida dos outros. Era palpável para ela, como o livro o era, que alguém tinha que morrer. Não um sem nome, mas um deles.

As palavras não paravam de dizer coisas, havia sempre um ponto continuando a frente. Mais uma vida acabada, mais uma ferida aberta, mais uma vala cavada. Menos um voltando para casa, menos uma atadura, menos um espaço de paz.

As linhas continuavam lá, como Ali continua na poltrona. Elas caíam e ressurgiam, se reorganizavam, sustentavam o avanço, sucumbiam novamente e demoravam a ser refeitas. Os que estavam em pé, não muito melhores do que jamais se levantariam. Deitados na terra de sangue, entre pedras e microrganismos.

As batalhas eram tudo aquilo que Ali sabia que seriam, e mais. A menina não quer olhar para a carne dilacerada do homem se debatendo, urrando para que enfiem qualquer coisa em seu peito. Ela lê o cansaço da curandeira e como a jovem, de barriga vazia e ombros curvados, não tem mais o que tentar para que aquele pedaço que se foi seja recuperado.

Não há oração para ser rezada quando outro corpo despenca numa cova rasa. A leitora estava em um terreno elevado, sentada numa pedra, um horizonte de devastação a uma queda de distância. A colina, que já não era verde há muitos capítulos, não receberia qualquer sinal de vida a não ser aqueles que se já não estavam mortos, morreriam em algum parágrafo em uma das poucas páginas que ainda tinha que passar suas vistas.

Uma Corte de Estrelas CadentesOnde histórias criam vida. Descubra agora