Prólogo

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Zahara

A barra do vestido branco suja pela lama voava com o vento, balançava os pés com as botas de borracha do cimo da árvore onde estava sentada observando o rio Licungo ao longe, o sol vermelho beijava a água como uma pintura rupestre anunciando o fim da tarde enquanto lia o último livro que o meu pai me deu em vida: "Baladas de Amor ao Vento" de Paulina Chiziane, um dos presentes mais preciosos que ele me trouxera de uma das suas viagens. Recriava a cena da primeira vez de Mwando e Sarnau em frente ao rio imaginando quando chegaria a minha vez de viver uma história de amor que suportasse o tempo e desafiasse o medo, traçava fantasias e idealizava o príncipe perfeito dos meus sonhos que me levaria embora daquela vila para viajar o mundo inteiro. Abri a primeira página do livro pela milésima vez naquele dia para ler a mensagem que ele me deixou: "Para alimentar a tua fome pela leitura, amo-te minha futura escritora."
Assinado: Pai.

Inspirei fundo tentando impedir que as lágrimas transbordassem de meus olhos, a falta que ele fazia era imensurável, meu pai era o meu herói, a única figura de pai e mãe que eu alguma vez tive e agora, assim como a mamã,  ele também se tinha ido embora, deixando-me completamente sozinha no mundo.

— Aí estás tu!— gritou Sónia, a hedionda da minha madrasta.— Desce já daí!— decidi ignora-la fingindo estar concentrada no meu livro.

— Eu sei que tu me ouviste Zahara. Não vou repetir duas vezes.— berrou abespinhada, preguiçosa fechei o livro e desci da árvore à contragosto, senti um dos galhos esfrangalhar o tecido mas ignorei porque a ideia de arruinar aquele vestido por ela oferecido deleitava a minha alma.

— Olha para ti, toda suja e desarrumada. Por que me atormentas tanto?— encarou-me com os olhos esbugalhados e foi me arrastando para casa segurando no meu braço com força, as unhas cravadas em minha pele como espinhos ardiam demonstrando que ficaria uma marca mas eu não reclamei, deixá-la enfurecida era uma espécie de terapia para mim e quanto mais irritadiça ela ficava, mais prazer eu tinha em tortura-la.

O sorriso largo murchou assim que avistei os estranhos sentados no quintal da minha casa em esteiras feitas de palha e cadeiras de madeira, as senhoras trajadas de capulanas novas, havia um barril de vinho, caixas de refresco e cerveja amontoadas umas encima das outras, um cabrito amarrado ao pequeno arbusto ao fundo e quatro galinhas numa cesta de arame. Lorena, a filha mais velha de Sónia, cinco anos mais velha que eu, servia um dos senhores barrigudos até o copo transbordar como se fôssemos uma família abastada, tinha a certeza que não tínhamos dinheiro para pagar nem aquela taça de vinho quanto mais o barril, mas quando ia caminhar em direção aos estranhos para perguntar o que faziam em minha casa, minha madrasta arrastou-me para dentro e ordenou que a sua segunda filha tentasse me deixar apresentável e saiu porta fora.

— Zahara, a mamã pediu-te para não saíres hoje, por onde andaste?— disse Saquina, ela era dócil e simpática, nós tínhamos uma diferença de um ano de idade apenas, ela tinha vinte e eu vinte e um anos, considerava-lhe uma amiga e era a única da família de Sónia com quem eu me conseguia relacionar.— Vou ter que te emprestar um dos meus vestidos.— disse procurando por um vestido no seu roupeiro de madeira artesanal.

— Eu fui ao rio apanhar ar, quem são aquelas pessoas lá fora?— perguntei com a garganta seca quase que como se já soubesse que alguma coisa má estava para acontecer. Saquina parou de vasculhar em seu roupeiro olhou para mim com uma expressão indecifrável em seu rosto, segurou em minhas mãos e puxou-me para perto da cama onde nos sentamos.

— Zahara, a mamã não te disse?— balançei a cabeça para os lados em negação, a pena em seu olhar e a hesitação em seus lábios confirmaram o meu destino antes mesmo que ela falasse:— Aqueles são os familiares do teu noivo, eles vêm negociar o teu lobolo.— soltei as minhas mãos dela e levantei-me imediatamente sorrindo como se ela tivesse contado uma piada.

— Não!— sorri balançando a cabeça para os lados absorta com aquela informação.

—Zahara...

— Não!— gritei desta vez, convencida de que não podia ser verdade.— Ela não vai fazer isso comigo.— uma lágrima seca lambeu a minha bochecha como uma gota de sangue num vidro fosco, a raiva subia das extremidades do meu corpo até ao peito impedindo-me de respirar direito.

— Ela já fez, eu sinto muito Zahara.— disse com um tom firme desta vez, quase que como que uma ameaça, ela não parecia mais a Saquina dócil que contava segredos sobre os namoricos com os rapazes ou com quem eu partilhava as roupas que usávamos para ir às festas às escondidas dos nossos pais, o seu olhar penetrante como de uma águia me fez congelar, não podia confiar mais nela, não podia confiar em ninguém.

— Saquina, eu não posso me casar com alguém que eu nem conheço.— disse com a voz trémula, em súplica, procurando algum resquício de compaixão em seu olhar gélido, sem sucesso. Dei dois passos para trás devagar percebendo que estava sozinha, virei-me para procurar a minha mala afim de fugir mas quando fui tentar carregá-la, estava pesada, abri a mala com pressa e algumas das minhas peças de roupa pularam de lá de dentro, ajoelhei-me no chão sem acreditar no que estava a acontecer, elas tinham tudo planeado.

— Zahara precisas vestir-te, eles estão a espera!— disse Saquina impassiva ao meu sofrimento.

— Ela ainda não está pronta?— perguntou Sónia baixinho ao abrir a porta.

— Eu contei para ela.— disse Saquina incerta, Sónia olhou dela para mim e impaciente caminhou até mim e puxou-me pelo braço obrigando-me a levantar:— Deixa-te de birras e veste-te já, eles estão a espera.

— Quando é que me irias contar? — perguntei soltando-me do aperto transtornada.

— Zahara, este não é o momento para as tuas cenas.— disse enfadonha.

— Tu pensas que eu sou o quê? Uma mercadoria para ser vendida?— gritei fora de mim, eu não ia me casar com um estranho, nem amarrada.— Esta casa e tudo que tem dentro dela é do meu pai, eu quero que tu e as tuas filhas saiam agora da minha casa!— berrei com raiva mas ela riu em resposta.

— Esta casa é do meu pai.— repetiu com voz de criança e caretas, estremeci.— Acorda menina! O teu pai não está mais aqui mas as dívidas dele continuam vivas. Inclusive esta casa que tu enches a boca para dizer que é dele está penhorada num agiota. O teu querido pai deixou-nos sem nada e eu estou a fazer-te um favor em te entregar a uma boa família que vai pagar umas boas cabeças de gado pela tua mão, tu deverias agradecer-me porque com esse teu mau feitio não há homem que se case contigo por gosto, agora deixa de me torrar a paciência e veste-te já!

— É mentira, o meu pai nunca faria uma coisa dessas.— minha respiração era superficial, suava frio sentindo o mundo ruir por baixo dos meus pés, nós não tínhamos muito mas o meu pai nunca deixou me faltar nada essencial, ele não faria uma coisa horrível dessas.—Tu só queres afastar-me daqui para ficares com tudo para ti, essa sempre foi a tua ideia, não é? Desde o início!— gritei magoada e ela deu-me uma bofetada na cara, senti a bochecha arder e o pescoço estalar, segurei no meu rosto não acreditando que ela havia batido em mim.

— Ai como é bom finalmente ter feito isso.— sua respiração estava descontrolada e a mão estava trémula de raiva.— Todos estes anos eu suportei o teu desrespeito e petulância porque eu amava o teu pai e respeitava a educação que ele escolheu te dar mas a bolha rompeu Zahara, ele não está mais aqui, acabou-se!— ela disse irritada.— Acabaram-se os mimos, é hora de enfrentar a realidade e a realidade é que tu vais te casar e começar uma nova família, eu espero de verdade que tu vires mulher e que tenhas muita sorte no teu novo lar.— dito isto Sónia saiu do quarto, Saquina atirou um dos seus vestidos na cama e saiu logo a seguir fechando a porta atrás de si com certa violência. Caí no chão chorando desesperada: — Papá, o que eu faço agora? Eu preciso tanto de si agora.

ZaharaOnde histórias criam vida. Descubra agora