Apresentação ao pintor - parte 2 (final)

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"Achei que continuaria a observar de longe" disse o artista em frente ao quadro.
O homem que caminhava apenas carregado por uma motivação sem sentido, pôs-se de pé diante do artista.
"Não sei o porquê de ter vindo até aqui, não sei oque faz-me caminhar com tanta convicção e muito menos sei como estou vivo, apenas rastejei-me sobre o tapete vermelho que pediram-me".

"Também sou levado pelos meus instintos mais profundos e primitivos, oras... Isto não é ruim, é a forma como acho de conectar-me ao meu âmago inconsciente e externalizá-lo". Retrucou o artista.

Por hora, o homem apenas observou aquele artista que, sutilmente perante aquela superfície árida e plana da cor de um branco cativante manchava-o com uma avalanche de cores divergentes. Era impressionante como às tonalidades iam tomando forma, como estes riscos traçados pelo pincel com ponta fina transformava-se em uma visão perfeita do recinto onde estavam.

Para o homem desmorto que apresentava-se de maneira informal, aquilo era alheio. Esta capacidade de conhecer-se. Talvez fosse uma visão de algo profundo de si mesmo que sinalizava sua morte. Mas então, sentou-se ao lado do artista e continuou ao observar-lo

Conforme alinhava as cores, às mãos do artista dançavam sob um chiado proferido pelo choque da brisa contra às árvores. O homem em estado decrépito, não sabia dizer ao certo oque formava-se sobre a superfície branca e quadrangular, agora manchada de tons vastos de tonalidades bipolares.

"Não há mais tempo para mim, acredito. Os dias passaram-se em um piscar de olhos. Lembro-me vagamente de reminiscências pueris minhas, mal consigo manter-me estável fisicamente. Ter o fim ao lado de uma obra cujo alguém põe seu coração e despende seu tempo, é sinônimo de que pelo menos uma vez, uma atitude vinda de mim não foi em vão." Proferiu o homem levemente instável.

"Você parece intenso em suas falas. Isto cativou-me...
Levante-se e siga-me."

O homem em conjunto com sua aparência anosa e desgastada, não viu uma alternativa mais viável que seguir o artista. Em outros casos, isto parecia um pé sobre a cova, pois, ir á casa de um estranho era pedir para acontecer algo maléfico. Mas, naquele momento, o homem não podia exigir aparência nem caráter, para ele, não havia diferença entre morrer nas mãos de um alheio ou morrer a esmo no campo onde encontrava-se.

E andando eles, chegaram até uma casa de tamanho médio, nada chamativa, não era velha nem nova. "Como estas coisas simplesmente surgem aqui? Lembro-me de passar por um lugar semelhante a este quando andava sobre o relvado. Tenho plena convicção de que não havia nada aqui; por que as coisas funcionam assim?" Pensou o homem intrigado com o evento.

"Este é o lugar onde minha presença reside. Sinta-se livre para observar ou até tomar um banho se quiser. Você parece cansado e demasiadamente perdido sobre tudo que o circunda." Exclamou o pintor em tom complacente para com o homem desgastado.

Por um instante, o homem em condições deploráveis, questionou-se sobre a veracidade de seus sentidos. Ele havia morrido? Desmaiado? Fora golpeado? Isto seria um sonho?
Acontece que, por um tempo longevo aquele homem havia sido desprezado pelos seu iguais, isso acontecia por qualquer lugar que o mesmo passava. Oque será diferente agora?

Sem demonstrar mais sinais de dúvida, o homem com aparência anosa apenas caminhou até um lavatório que tinha detrás da casa. E chegando até o local, lavou-se de maneira correta pela primeira vez em alguns anos. Provavelmente, há tempos, este não via a ponta de uma lâmina para fins higiênicos. Depilou sua barba, e com leveza esfregava cada perímetro do corpo com uma esponja. Ardia onde a mesma passava, suas feridas foram cobertas por desasseio; o solo de seu pé doía, foram horas e horas de caminhada.

Para alguns isto parece um simples banho de um mal-lavado, mas a verdade é que pela primeira vez em anos, a lavagem de seu corpo lavou também sua alma.

"Auxiliar, auxiliar. Pintar, pintar. Colorir, colorir. Sentido e o Desfalque dele. Externo e interno.
Há muitas possibilidades, elas aplicam-se e modificam-se com base no ponto de vista de quem às vê. Você parece não ter pensado sobre isto quando encontrou-me sentado mesclando àquelas cores. Estou certo?"
Espontaneamente, estas palavras do pintor espaireceram-se pelo lugar.

"Creio que, por minha condição física, meus sentidos tenham sido deturpados.
Lembro-me apenas de ter sentido um conforto perante o espaço. A brisa guiando às folhas das árvores. O odor da tinta espalhando-se pelo quadro e ofuscando o cheiro amadeirado do cavalete. Foi o suficiente para sentir-me em paz." Proferiu o homem de olhos lânguido.

"Sabe... Você parece-me distante... Veja como chegou a mim" destacou o pintor com alguns utensílios culinários em sua mão. "Vivo de maneira autônoma, sem prender-me às rédias da sociedade industrial contemporânea, mas creio que você não acompanhe a sociedade em seus dias atuais. Busco por variados lugares onde posso expôr meu âmago mais profundo, coisas que nem mesmo eu sei. Veja só, através dessas experiências pude encontrar-me. Os pincéis e às cores são só desculpas para para ser livre, eis a mente de um artista.
Às ações simplesmente realizam-se, o mundo automaticamente roda, e às pessoas naturalmente nascem e morrem. Está tudo bem, pois é o percurso nato das coisas.
Minhas reminiscências estão marcadas em mim, em minhas artes e em minhas digitais. Estão marcadas em minha alma e não há jeito no mundo de tirá-las de lá, acho que isto é oque torna-me belo e amargo por dentro. Sou eu e minhas ações, isto não irá mudar, por isso eu aprendi a conviver com elas."

O forasteiro de uma perna só Onde histórias criam vida. Descubra agora