Capítulo 1

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Da janela da cozinha, Giselle observava o sol nascer. As nuvens cinzentas e rosadas anunciavam o começo de um novo dia.

Todas as noites, a Selenia, a lua, colocava as estrelas para dormir só para que todas as manhãs, Oriana despertasse-as, tocando delicadamente uma a uma como um beijo de mãe. Dizem que durante esses segundos, qualquer um que olhar para o céu e fizer um pedido será atendido.

Giselle já tentara incontáveis vezes receber essa bênção, mas nunca conseguiu e eventualmente deixou de tentar. Lembra-se vividamente da única vez que vira o Sol se levantar, o primeiro raio de sua coroa marcando o azul noturno. A emoção de ter seu pedido atendido foi tamanha que não conseguiu dizer as palavras a tempo. O segundo raio surgiu no céu antes que percebesse. Havia perdido sua talvez única oportunidade.

O cheiro de queimado despertou seus sentidos. A fatia de pão estava preta de frigideira. Se lamentando, ela virou a panela em um prato lascado e deixou que esfriasse enquanto cortava outra fatia. Podia comer aquela e fazer uma melhor para a mãe. Era o que merecia por se distrair com tanta frequência.

Os cabelos ruivos já batiam nas costas, brilhantes como chamas. Ainda estavam soltos, caindo em cachos em frente ao rosto. Tinha sorte de nunca tê-los queimado enquanto tentava cozinhar. Colocou a segunda torrada em outro prato, essa estava dourada e cheirando a manteiga. A água para o chá fervia junto à lenha. Ela enrolou um pano ao redor do cabo da leiteira e serviu em uma xícara, sobre as ervas e frutas secas que já havia escolhido. Ao mesmo tempo, ouviu a mãe entrando na casa pelos fundos. Ela tirou os sapatos e veio até a cozinha com uma garrafa de leite que tinha acabado de tirar.
– Maggie deu muito leite hoje, acho que vamos conseguir fazer queijo para levar ao mercado. – avisou ao chegar no cômodo.

– Ótimo, posso fazer isso após as entregas.

Giselle colocou os pratos na mesa enquanto a mãe enchia uma xícara de leite para si.

– Não precisa se preocupa, eu posso fazer. Vá se encontrar com os outros jovens na cidade.

Era a resposta da mãe sempre que se oferecia para fazer qualquer coisa.

Desde que conseguia se lembrar, eram apenas as duas para cuidar da fazenda. Seu pai fora seduzido pelas aventuras além dos muros da cidade e partiu quando ela era muito pequena. Não parecia tão ruim, Bertha não hesitou em se responsabilizar por todas as necessidades da filha e, quando podia, também pelas vontades. Uma mulher forte, admirada por várias outras que tiveram destinos mais gentis ou maridos melhores. Entretanto, a força sempre cobra seu preço e suas emoções endurecidas eram prova disso. Cada vez mais, Giselle reparava que a mãe estava exausta. O rosto estava coberto de linhas e havia marcas de sol por todo o corpo magro. Cabelos cada vez mais brancos cobriam a cabeça e uma tosse que nunca a abandonava.

Ainda assim, dificilmente aceitava a ajuda da filha.

– Claro que eu me preocupo, mãe. – Respondeu baixinho, comendo a torrada queimada.

Em alguns minutos, ela saiu empurrando o carrinho com as garrafas e baldes pela estrada de terra. A primavera havia tomado a floresta ao redor com sua fertilidade. As árvores tinham brotos, flores coloriam a mata por toda a parte. Faria um buquê na volta para alegrar a casa. A caminhada até o centro da cidade era longa, mas nessa época do ano a beleza anestesiava o cansaço.

Giselle pegou o caminho de sempre, passando pelas casas pequenas na extremidade da cidade. Conforme se aproximava da praça central, as ruas passavam a ser blocos de pedra e havia uma concentração maior de lojas. Passou por algumas casa de clientes de longa data, abastecendo jarros, potes ou o que mais quisessem com leite fresco antes de seguir para as padeiras e doceiras.

Já era quase hora do almoço quando terminou de cumprir o cronograma. Cansada, deixou o carrinho ao seu lado e sentou-se em um banco na praça. O chão era um mosaico colorido de vidro e ladrilhos quebrados que davam uma atmosfera festiva ao local, mesmo que poucas festas ocorressem ali. Se abaixou olhando os próprios sapatos gastos, sabia que não aguentariam mais muitas viagens. Se conseguissem vender todos os artigos que levariam para a feira em alguns dias, poderia comprar outro par.

Ela respirou fundo, sentindo o pólen das flores tomar o ar. Já tinha se encontrado com alguns insetos e sabia que os veria com cada vez mais frequência. Era encantador ver a vida retornando, não importava o quão rigoroso tivesse sido o inverno. Observou crianças brincando em roda e voluntários trabalhando no templo das Deusas Amantes. Oriana, rainha dos dias e Selenia, senhora das noites. Essa é a maior construção da cidade com pilares de pedra e o teto adornado com estrelas. O templo estava sendo preparado para os rituais de primavera. Primeiro tiravam a lama que restava quando a neve derretia para que seu exterior voltasse a ter o branco cintilante da pedra e o interior se colorisse com as histórias contadas nas paredes. Flores dos ciclos, que mudavam de cor conforme o Sol tingia o céu, ainda seriam plantadas nos canteiros e folhagens subiriam pelas colunas. Ainda faltavam alguns meses até lá.

Havia ainda uma jovem vendendo flores e outras plantas retiradas da floresta fora dos muros da cidade. Poucas pessoas tinham coragem de se aventurar por lá mesmo no mais claro dos dias, por isso tê-las era um artigo de luxo. As flores eram compradas pelas senhoras dos comerciantes ou como juras de amor dos mais desesperados apaixonados, e ainda assim nunca em abundância. As ervas, por outro lado, eram compradas por curandeiros que conheciam seu potencial para salvar ou condenar uma alma. Naquela ocasião, um homem de cabelos loiros cheirava uma flor amarela de aparência delicada. Seus olhos subiram das pétalas para o rosto de Giselle, primeiro com surpresa, depois curiosidade. Ele lambeu os lábios como um lobo imaginando uma refeição futura. Parecia que podia ver abaixo de sua pele, devorando-a com os olhos. Ela desviou o olhar e respirou fundo sem entender porque seu coração estava acelerado. Não se lembrava de tê-lo visto na cidade até então. Seus gestos tinham certa elegância que os viajantes normalmente não possuíam.

Pegou seu carrinho quase vazio e voltou para casa. Até chegar à estrada, não tinha reparado o quanto estava faminta.

A tarde avançava conforme Giselle ajudava a mãe a fazer queijos e manteigas. A feira seria em dois dias, as duas desceriam para a praça central da cidade com o carrinho abarrotado pelos produtos que conseguiram fazer ou extrair. Além do leite, tinha uma pequena plantação de tubérculos e alguns temperos, também levariam os excedentes para lá. Depois de algumas vendas, a mãe começaria a circular pelas barracas em busca de outros legumes, ovos e talvez carnes, dependendo do quão bem o dia seguisse. Enquanto isso, Giselle ficaria em seu posto atendendo os clientes com um sorriso no rosto. Ter que procurar por sapatos novos seria uma pitada de emoção em um dia roteirizado.

Estava apreensiva com a possibilidade de rever o homem misterioso, mas não seria de todo ruim. Algo em sua postura a deixou intrigada demais para esquecê-lo.

GiselleOnde histórias criam vida. Descubra agora