Capítulo 7

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 Por mais que fechasse os olhos, a sensação inebriante do sono não conseguia chegar até ela. Sempre que começava a descer rumo às profundezas de seu inconsciente, se deparava com imagens perturbadoras. Às vezes assistia de cima Ardan ser perseguido por uma alcateia inteira, desviando das árvores largas da floresta até ser pego e dilacerado pelas criaturas sedentas. Em outras, ele já estava machucado com a cabeça deitada em seu colo, quando as feras os cercavam no meio da mata, aparecendo de todos os lados. Em ambas situações, a visão do teto de madeira quando acordava ofegante era um conforto. O jovem dormia como uma pedra na cama ao seu lado.

 O sol já banhava o quarto através da cortina puída. Levantou-se cautelosamente, tirando o travesseiro e as cobertas do chão. Deixou-os na beirada da cama quando colocou a mão na testa de Ardan, sentindo sua temperatura. Parecia bem. Saiu do quarto, ainda se esticando. As costelas doíam pelo contato com o assoalho por tanto tempo.
A porta do quarto da mãe estava aberta e o cômodo vazio. Era natural que também não conseguisse voltar a dormir após uma interrupção tão abrupta. Seguiu para a cozinha. No modo automático, começou a preparar ovos mexidos e torradas para o café da manhã. A gema se espalhou pela frigideira, silvando, mas a atenção de Giselle não estava mais ali, haviam muitas dúvidas em sua mente.
Ardan estava são, salvo e aparentemente mais apaixonado por ela do que nunca, visto o que quase aconteceu na noite anterior. Ainda se arrepiava só de lembrar. Começava a se sentir cada vez mais sem saída. Ardan sempre fora uma pausa desse mundo onde ela tinha obrigações demais para cumprir. Ser uma boa filha custava mais a si mesma do que admitiria dizer a qualquer um. Custava sufocar um sonho. E ele sabia disso, pois a compreendia tão bem quanto à floresta. Entretanto, um problema nunca abordado pairava sobre suas cabeças.

Amá-lo tinha o mesmo custo e era mais difícil se contentar com isso quando outro alguém lhe oferecia libertação.

Quando deu por si, a fatia de pão estava corbonizada na frigideira. O cheiro era forte. Estava queimada demais para ser comida. Suspirando, ela jogou os restos mortais da torrada nas chamas do fogão a lenha e cortou outra para recomeçar. Os ovos pareciam bons, em outra panela sobre a mesa.
Ela comeu, mesmo sem apetite, e saiu. Caminhou rumo à casa de Ardan para avisar aos pais que ele tinha aparecido. Se o pai viesse a cavalo, seria mais fácil de levá-lo. Os pensamentos sobre dois garotos continuavam rodeando-a durante todo o caminho, mas foram atenuados ao chegar lá.

Lacey estava sentada na cerca balançando os pés. Era alta demais para a menina subir sozinha, alguém devia tê-la colocado ali. Estava no horário no qual geralmente ia para a escola, mas a tensão devia ter feito com que os pais deixassem-na ficar em casa. Ela levantou a cabeça, pareceu surpresa ao ver Giselle se aproximando.
– Ardan não está – Disse tristonha, como se pedisse para ela ir embora
– Eu sei – respondeu Giselle – Ele apareceu lá em casa nessa madrugada. Está bem. Quer dizer, bem o suficiente. – corrigiu.
O rosto da menina se iluminou com um sorriso enorme. Ela se virou para dentro do quintal e saltou da cerca correndo em direção à casa.

– Papai! Mamãe! – gritava – Ardan apareceu! Ele está vivo!!
A porta se abriu e os dois saíram com olhos arregalados, esperando ver o filho. Marion estava na frente correndo com lágrimas nos olhos, já Frederik mantinha-se alguns passos atrás, com um sorriso pequeno, mas maior do que Giselle jamais vira. Ambos pararam, confusos quando notaram que ela estava sozinha.
– Ele está ferido – explicou – O meu carrinho é muito pequeno para trazê-lo.
A mãe se assustou, mas assentiu. Ela pegou a mão do marido e os dois trocaram um olhar intenso por alguns segundos. Estavam aliviados, a tensão dos ombros diminuindo.
– Vou preparar os cavalos. – avisou Frederik, sem olhá-la.

O percurso pareceu demorar o triplo do tempo naquele silêncio nervoso. O pai de Ardan já era um homem de poucas palavras normalmente, mas nessa ocasião parecia mudo. Giselle montou em Azaleia que já a conhecia e seguiu o caçador galopando pela estrada. Não havia vento ou canto dos pássaros, apenas o som dos cascos preenchia o ar.
Ao abrir a porta, Bertha e Ardan estavam sentados à mesa da cozinha. Eles comiam os ovos e as torradas preparados por ela com chá e algumas frutinhas. A mãe sorriu quando com o fim de uma história contada pelo jovem. Se não fossem os panos sujos de sangue amarrados nos ferimentos, poderia ser uma cena comum e aconchegante. Os rostos se viraram para a entrada, ainda com a atmosfera leve. A sutileza do movimento passaria despercebida para a maioria das pessoas, mas Giselle notou o jovem endireitar a coluna, nervoso.

GiselleOnde histórias criam vida. Descubra agora