Capítulo 10

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Os dias passaram sem que sua cabeça a deixasse em paz.

Giselle não procurou por Ardan. Tampouco foi procurada por ele. Ainda não sabia se isso era de todo ruim. Após tantos anos, era estranho não ter sua presença constante, mas pensar em seus bons momentos agora doía. As palavras arremessadas com raiva voltavam em seus pensamentos sempre que surgia uma brecha. Para evitá-los, ela tentava se manter o mais focada possível nas atividades que realizava, fugindo das falsas esperanças provenientes dos "e se" que a rondavam dia e noite. Três letras capazes de causar um estrago imensurável.
Outra ausência começava a incomodá-la cada vez mais. Loys também não tinha voltado a encontrá-la no centro, nem vindo até sua casa. Por outro lado, também não havia deixado um bilhete de despedida. Para o resto do mundo, entretanto, nada havia mudado. Ele era como um fantasma que a escolhera a dedo para assombrar – irônico, considerando o final que essa história ainda terá –. Se não fosse a discussão com Ardan, podia até começar a duvidar se ele realmente existia. Ele deve estar ocupado, pensou, seus pais devem ter chegado com os pavões da rainha e sabe-se lá quantas outras coisas interessantes. O pensamento quase trazia um sorriso ao seu rosto. Se fosse esse o caso, gostaria de ser convidada para ver.

Nos primeiros dias, a camponesa vivia de expectativas, esperando que ele pudesse aparecer em qualquer lugar, a qualquer momento. O coração disparado em cada esquina que virava pela esperança ou temor de que ele estivesse ali. As duas imagens se fundiam na sua cabeça. Ao mesmo tempo que tinha a elegância e o vocabulário de um cortesão, podia ser ameaçador e possessivo. Independente disso, o momento demorava a chegar. Como um pássaro separado de sua revoada, a solidão lentamente se abatia sobre ela. Ela se perguntava o que tinha feito de errado. Tê-lo mandado embora naquele fim de tarde, parecia um motivo cada vez mais justo para o tratamento que estava recebendo. Pelo menos ainda estava convencida que independente dos motivos, ela merecia um fim.

A única coisa que lhe arrancou sorrisos foi a chegada do verão. Apesar do nervosismo de encontrar Ardan em meio aos camponeses, a mãe conseguiu convencê-la a sair de casa. O festival começava ao entardecer do último dia da primavera e ia até o primeiro amanhecer do verão, o dia mais longo do ano.
Giselle ganhou de presente um par de sandálias e um novo vestido. O tecido era fresco e a mangas curtas, perfeito para a estação que viria. Se olhou no reflexo da janela, gostando cada vez mais do que via. Aos poucos, estava se parecendo com quem sempre foi. Com a ajuda de Bertha, trançou os cabelos em uma coroa ao redor da cabeça, enfeitada com flores que desabrocharam na floresta.
Comeram, dançaram e assistiram junto aos outros o espetáculo da mudança de estação. O céu clareava aos poucos para receber Oriana em todo seu esplendor. Entretanto, antes dela surgiram as fadas, como luzes flutuantes e amareladas vindo do mesmo lugar onde o sol nascia. Quando elas se aproximavam, era possível sentir seu calor e ver as asas douradas batendo em suas costas minúsculas.
Assim que o primeiro raio cortou a imensidão azul, as fadas foram até ele, ampliando sua luz para que fosse ainda mais brilhante. Elas voavam como se estivessem coreografadas na música do universo, cruzando-se pelo céu, criando desenhos conforme novos raios surgiram. A última canção foi entoada pela cidade em alto e bom tom, agradecendo às fadas e à deusa por trazer a estação para que cultivassem e colhessem tudo o que lhes sustentaria no inverno.

Vendo o sorriso no rosto da filha enquanto cantava, Bertha teve esperanças de que sua alma se alimentasse dos raios de sol tanto quanto as plantas. Infelizmente estava errada. Giselle demorou a se recuperar da noite virada, como se seu cansaço tivesse se instalado em seus ossos. O que a mãe não sabia é que na verdade isso se devia a incontáveis noites mal dormidas. Já estavam em outra estação e ele não tinha voltado a procurá-la. Ela iria até a casa dele se soubesse onde ficava, mas quanto mais revisava as histórias de Loys atrás de algo que pudesse ajudar a encontrá-lo, mais percebia que nada sabia sobre seu paradeiro. Suas palavras eram rasas. Tudo foi armado e ela caiu como um bezerro vacilando em seus primeiros passos.
Durante as viagens no tempo que fazia em sua cama, a jovem notou outras coisas estranhas. Se pegou sentindo falta das mãos macias em sua bochecha, tão diferentes das do caçador, da mãe ou de qualquer outra pessoa que já a tinha tocado. Até então isso não tinha se feito notar. Nem os dentes perfeitos ou como nunca repetia roupas. Loys devia ser muito mais rico do que ela podia imaginar.

A jovem tentava parecer bem na presença da mãe, ajeitando a postura e pondo um sorriso suave no rosto, mas no fundo sempre existia o abandono e a solidão que fizeram morada dentro dela. O buraco ainda existia em seu peito, mas com o passar do tempo estava se tornando mais fácil conviver com ele. Em uma manhã ensolarada, ela saiu com o carrinho para entregar as garrafas de leite. Prendeu os cabelos em um coque para ser menos incomodada pelo calor. Esperava que ninguém desse atenção demais nas partes do rosto que ainda estava aprendendo a gostar. Caminhava apressada pelas ruas do centro da cidade sabendo que seus produtos expostos ao sol poderiam estragar mais rápido. Por sorte não tinha muitas entregas para fazer.
Já fazia o caminho de volta a casa, sentindo o frescor da brisa na sombra das árvores que protegiam a estrada. Enquanto caminhava, reparou que os pássaros cantavam ao seu redor, mesmo que não os visse. A percepção foi seguida por outra ainda mais surpreendente. Por alguns instantes, ela não tinha pensado em nada. Um pequeno sorriso surgiu no rosto da moça junto da vontade de contar isso para alguém. Claro que a mãe ficaria feliz em saber, mas estava pensando em um certo jovem de pele bronzeada e cabelos castanhos. Já era a hora de quebrar esse silêncio. Podiam tentar esquecer o que aconteceu, quem sabe as coisas pudessem voltar a ser como antes com certo esforço. Ela estava disposta e, conhecendo-o como o conhecia, acreditava que também estaria.

A tranquilidade durou pouco. Passos a frente no caminho uma figura surgiu das árvores na lateral da estrada. Era alto, vestido de marrom e verde, como se quisesse passar despercebido na floresta. Ele sorriu para ela, abrindo os braços para recebê-la.
– Finalmente, minha querida. – disse Loys.
Ela parou bem a tempo de evitar passar as rodas do carrinho sobre seus pés. Levantou o rosto para o homem à sua frente. Apesar de sua beleza sempre ter sido pontiaguda, as feições abatidas revelavam seu cansaço. Algo estava acontecendo. Ele se aproximou e a abraçou pela cintura, prestes a beijá-la, como se nada houvesse acontecido.
– Eu... achei que nunca mais o veria – Ela colocou as mãos em seu peito, criando distância entre eles.
– Ah, por favor, perdoe-me, querida. Nas últimas semanas aconteceram mais coisas do que consigo contar nesta breve visita. – Disse, meneando a cabeça. – Precisei viajar e não tive como avisá-la.
– Precisou viajar? – repetiu.
Seus sentimentos estavam confusos. Giselle olhava em seus olhos tentando encontrar algo que lhe desse segurança, que provasse que podia confiar nele mesmo depois de tudo. Ela não quis admitir, mas era um esforço tão inútil quanto tentar nadar num espelho d'água que mal lhe cobria os tornozelos. Deu um passo atrás, sentindo os ombros relaxarem ao não ter seus braços a envolvendo.
– Sim, mas para onde fui não vem ao caso nesse momento. Prometo contar-lhe tudo num momento oportuno. – Ele pegou uma de suas mãos e a beijou carinhosamente. – Eu vim fazer-lhe uma proposta.
Ela inclinou a cabeça, esperando. Estava magoada, mas alguma parte de si se alegrava ao vê-lo de novo. Não sabia o que esperar, mas as borboletas se agitavam novamente em seu estômago. Ele passou a mão livre nos cabelos loiros antes de continuar.
– Vou me mudar novamente. Na verdade, acho que está mais para uma vida itinerante. – Voltou a olhá-la – Eu adoraria que você viesse comigo. – sorriu.

As folhas das árvores não farfalhavam mais ao vento e os pássaros pararam em pleno ar. Quando ele a olhava daquele jeito, sentia-se a mulher mais importante daquele reino. Processando suas palavras, ficou ainda mais consciente do vazio em seu peito. Diante dela estava a possibilidade de realizar seu sonho mais impossível.
– Eu... Não sei. – A respiração se acelerando junto com o tambor que surgia em seu peito – Não posso só abandonar tudo e deixar minha mãe sozinha.
– Ela vai ficar bem, posso fazer uma doação para garantir o seu conforto. – Ele se aproximou, ainda segurando sua mão. – Pense em como seria perfeito, nós dois de navio em navio, conhecendo cidades encantadoras, provando comidas diferentes e encontrando lugares secretos. – O deslumbre em seu tom de voz era envolvente.
Ele encostou a testa na dela, fechando os olhos. As mãos agora tocavam sua cintura delicadamente, como uma dança tranquila no canto de um salão de baile.
– Só quero que vá comigo. – Sussurrou um último pedido.
Ele depositou um beijo suave em seus lábios antes de afastar o rosto para olhá-la. Esperava uma resposta. Seus lábios se abriram, mas ela não sabia o que dizer naquele momento. Era uma oportunidade única que ela nunca pensou que aconteceria. Talvez a mãe compreendesse que precisava seguir o próprio rumo e que isso não significava que não era grata por todos os anos de cuidado ou que não a amasse. Porém, sabia que embora não precisasse mais fazer o trabalho da fazenda, ela continuaria fazendo, cada vez mais velha e solitária. Era uma imagem horrível de ver, mesmo em seus pensamentos.
– Certo, não precisa decidir agora – cedeu ele – Me encontre no portão sul ao entardecer em dois dias. Se não aparecer, entenderei que há outras coisas mais importantes para você.
Ainda em choque, a jovem apenas assentiu.
– Então talvez adeus, minha Giselle.

Ele jogou um beijo e se virou. Entretanto, não partiu sem lançar à jovem um olhar tristonho.

GiselleOnde histórias criam vida. Descubra agora