Capítulo 6

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 Bertha continuava quieta. As duas organizaram as compras no armário da cozinha sem que nenhuma palavra desnecessária fosse dita. Tinham alguns grãos, açúcar e sal além dos legumes, ovos e carne. Giselle evitava encará-la, sentindo o peso das coisas não ditas entre as duas. Também não mencionou a conversa que tivera com a mãe de Ardan, adicionando mais um item à pilha de coisas que escondia. Essa. porém, por um motivo diferente. Tinha medo de dizer as palavras em voz alta fazer com que as preocupações que rondavam seus pensamentos se tornassem ainda mais reais. Mais cedo ou mais tarde teria de contar a ela, mas por hora preferiu culpar o cansaço do dia para se recolher logo após lavar a louça do jantar.

Mal parecia que fazia tão pouco tempo da manhã do dia anterior quando estava animada para algo tão incrível que até a mãe se animara junto com ela. Suspirou, desejando que a tensão deixasse seu corpo. Naquela noite, a preocupação com o jovem caçador se manifestava em pesadelos catastróficos. Em uma das vezes que acordou assustada, ela ouviu alguns barulhos vindo da parte de trás da casa, onde ficava o curral das vacas e a pequena horta. Já tinha acontecido algumas vezes de animais ultrapassarem suas cercas, era algo com o que sabia lidar. Sem acordar a mãe, ela pegou o lampião de seu quarto e saiu para ver o que era.

A lua era um filete iluminado no céu, mas ela conseguiu ver um vulto indo em direção ao armazém onde guardavam as ferramentas e algumas ervas usadas para medicamentos. A figura era grande e avançava devagar. Seu corpo gelou. Parecia muito mais uma pessoa do que um bicho.
Engolindo em seco, Giselle seguiu naquela direção estreitando os olhos para tentar ver melhor. Mantinha a luz baixa para ser mais discreta e pisava apenas na grama ainda verde. O ser parecia mancar, provavelmente estava machucado. Ela se aproximou o suficiente para vê-lo entrar no cômodo apertado. Ouviu o corpo despencar lá dentro, pesado. Estava encurralado. Se ela cobrisse a entrada, não havia para onde fugir. A não ser que passasse por cima dela.
Respirou fundo, torcendo para receber coragem do ar frio da noite. Seja lá o que fosse, com certeza não estava preparada para isso. Talvez devesse chamar a mãe para ajudá-la, mas ele poderia fugir nesse meio tempo. Seu coração estava acelerado quando ouviu alguns barulho vindo do armazém e a luz de uma chama surgiu da porta entreaberta. Com certeza estava lidando com uma pessoa.

Ela caminhou em silêncio para se aproximar, ouvindo murmúrios de uma voz masculina. Com isso Giselle sabia lidar. Empurrou a porta devagar, sem querer assustar o invasor. Os olhos se arregalaram quando sentiu o cheiro de floresta misturado ao cheiro de sangue.
– Ardan? – Ela perguntou, mesmo sabendo a resposta.
Ele estava sentado no chão de madeira. O lampião criava sombras em seu rosto, pois luz estava direcionada para um ferimento na perna. O sangue estava seco, mas dava para ver o estrago profundo em sua panturrilha. Outro machucado pontuava o braço esquerdo, parecendo tão antigo quanto. A tira da bolsa cortando seu corpo como de costume.

– Desculpe o atraso. – Ele ainda conseguia sorrir como se fosse mais uma de sua brincadeiras. – Acabei tendo alguns imprevistos no meio do caminho.

Giselle se abaixou, usando seu próprio lampião para poder ver melhor.
– O que aconteceu? – perguntou, enquanto analisava os ferimentos.
– Eu encontrei um lobo, eu acho. – Ele estreitou os olhos, pensando – foi muito rápido.
– Um lobo? – ela levantou o rosto para olhá-lo com o cenho franzido – Dentro dos muros da cidade?– franziu o cenho.
– Fora dos muros – respondeu, como e não fosse tão importante – Mas não era para ele estar caçando durante o dia.
– E o que você estava fazendo fora dos muros? – Questionou, falando mais alto do que devia – Você sabe que é perigoso.
Ela cobriu o rosto como se não quisesse ouvir a resposta. Precisava se acalmar. Apesar de profundos os ferimentos poderiam ser curados. Com a respiração entrecortada, tentava se convencer de que o importante é que ele estava a salvo agora.

– Você não está focando nos pontos certos. – ele explicou – Eu encontrei um único lobo caçando durante o dia. Esses não são os hábitos normais deles, algo de muito errado está acontecendo lá fora.
– Algo de muito errado está acontecendo com você! – Gritou Giselle, tirando as mãos do rosto.

O tempo parou naquele instante. A única coisa imune ao feitiço era o coração acelerado de Giselle Ele tentava decifrar o que ela estava pensando. Adentrando em seus olhos de floresta, viu os sentimentos como rajadas de vento levando as folhas das árvores para todos os lados. Não era só raiva por ele ter passado dos limites, era medo, do tipo que crianças têm quando são deixadas pelos pais em um lugar estranho. Ela temia profundamente que algo pior tivesse acontecido, algo que o impedisse de voltar para ela. Giselle virou o rosto, quebrando a conexão entre eles. Seus olhos se encheram de lágrimas reprimidas desde o dia anterior.
Em algum lugar, Giselle estava aliviada por todas as coisas que passaram pela sua cabeça nos últimos dias terem sido apenas isso, ideias mirabolantes. Ele não tinha desistido de encontrá-la, nem fingido que não foi ideia dele os dois estarem juntos. foi só um terrível imprevisto. Devia ter saído para procura-lo. Uma ideia tola, sabia que mesmo que fosse atrás dele, não teria pensado que ele fora inconsequente o suficiente para deixar os muros da cidade. O coração se apertava por saber que enquanto aproveitava a tarde com outro rapaz, Ardan precisava de sua ajuda.

Ele se inclinou para frente e esticou o braço saudável para tocar seu rosto.
– Desculpe, eu não queria te assustar.

Seus dedos a aninhava do queixo à bochecha onde secou com o polegar uma lágrima que escorria. Os olhares se encontraram novamente na luz parca, tentando ler um ao outro. Os rostos se aproximavam devagar, cedendo à força desconhecida que puxava um ao outro. Dois corações balançados por sentimentos diferentes. Giselle fechou os olhos e encostou a testa na dele. Não era o momento para isso.
– Vamos entrar. Minha mãe vai saber o que fazer. – Disse ao se afastar.

Ela se levantou primeiro e deu apoio ao jovem relutante até a porta dos fundos da casa. O corredor era muito estreito para que atravessassem lado a lado, então o deixou em seu quarto, que era o cômodo mais próximo à entrada onde ele poderia sentar. A mãe veio afoita do quarto ao lado, já tinha acordado pelos barulhos que fizeram. Giselle acendeu velas pelo quarto, enquanto Bertha esquentava água para que limpassem os ferimentos.
Com panos macios, as duas vieram tirando cuidadosamente a camada de sangue seco e a terra. Os dentes do lobo haviam se enterrado profundamente em sua carne, mas não parecia dilacerado a ponto de não ter conserto.
– Vou preparar uma compressa de camomila, mas você parece muito bem para alguém que passou dois dias mancando pela floresta. – Disse a senhora, colocando o pano sujo de sangue de volta na bacia de água.
– É porque foi um dia e meio, Senhora. – Ele respondeu, com um sorrisinho.

Bom saber que senso de humor estava impecável.

Um silêncio incômodo recaiu sobre os jovens. Estavam sentados lado a lado na cama, mas não ousaram olhar um para o outro. A lembrança da proximidade da boca, de sentir o ar que deixava seu nariz atingindo seu rosto ainda era demais para se lembrar para ambos.
– Sua mãe me perguntou sobre você ontem. Ela está muito preocupada. – disse Giselle, na tentativa de tornar o clima menos tenso.
– Imagino que devam estar desesperados. – O peso da realidade se abateu sobre ele, a postura desanimada – Eu não avisei a ninguém.
– O que estava fazendo fora dos muros? – ela virou o rosto para ele.
O jovem a encarou de volta, pensando em como responder.
– Estava procurando uma coisa.
Ela esperou que continuasse, porém nada mais saiu de sua boca.
– E não vai me contar o que é?

A mãe entrou com uma panela quente e alguns panos limpos. Giselle se levantou para ajudá-la a prender as compressas nos ferimentos.

– Sorte que não estão mais sangrando, você é muito forte, rapaz.
– Eu só estava preparado, sempre estou na verdade.

Ele continuou falando sobre como sempre tinha água fervida e comida para dias em sua bolsa de caçada, além de técnicas de sobrevivência que tinha aprendido com o pai desde criança. Entretanto, sua voz estava longe demais para Giselle ouvi-lo. "Ele podia estar morto" eram as únicas palavras que giravam em sua mente. Seus sentidos se fecharam até que não houvesse nada além das mãos que davam nós no tecido encharcado para que ficasse no lugar. Não era do perfil de Ardan esconder coisas. Não estava mentindo, mas as meias verdades eram tão desconfortáveis quanto, principalmente porque demonstraram que ele achava que não podia contar a ela, não podia confiar.

Serviram jantar para o jovem antes que adormecesse. Logo a noite se tornaria dia mais uma vez.

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