A lua acima de todos os prédios e longe de tanta névoa, brilhava. Jack caminhava pelas ruas vazias já após o toque de recolher, afinal, sempre havia pessoas desatentas ou rebeldes que infligiam a lei da rainha. Passou pelo centro da cidade, indo para zona mais pobre da cidade. Era uma noite escura, e logo a chuva começou a cair em Londres. O caçador era um homem alto, forte e habilidoso, com uma espada reluzente pendurada em seu cinto. Havia uma lenda por toda região sobre um ser que enfrentava as sombras, salvando os desprotegidos que eram atacados pela noite.
Muitos buscavam entender o que se escondia nas sombras, se eram monstros, demônios ou apenas homens maus, afinal, a pior monstruosidade já tinha vindo de pessoas comuns antes. Os olhos cinzentos se moviam atentamente por dentro da névoa, buscando qualquer movimentação suspeita. Ouviu um piado, como um lamento distante de onde estava. Caminhou minuciosamente pela estrada de tijolos desalinhados, evitando qualquer barulho.
O choro que ouviu, vinha por detrás de uma caçamba de lixo, mofada e com cheiro pútrido que queimou as suas narinas. Deu passos leves e encontrou uma garota ruiva e vestida de trapos, soluçando e com medo. A figura feminina se contorceu ao encarar o rapaz muito mais alto que ela, as lágrimas lhe percorreram o rosto seco devido a falta de alimentação.
— Uma mendiga. — Sua voz soou com frieza. — Por que está chorando garotinha?
Jack se abaixou e observou alguns cortes e arranhões nos braços e nas pernas da garota pálida e de cabelos alaranjados sem brilho.
— Monstros. — sussurrou, com um nó de choro na garganta.
— Que tipo de monstros? — Os olhos cinzentos encarou as orbes esverdeadas da menina, que diferente do cabelo, brilhava intensamente. Provavelmente por conta das lágrimas que os enchiam.
O silêncio da madrugada e as poucas luzes que iluminava nos postes, criavam um clima denso, e apesar da experiência do caçador, sabia que não podia vacilar.
— Aqueles que estão ao redor. Nas sombras. — Encarou as paredes ao redor do beco, como se pudesse ver as coisas que se encolhiam e se moviam por elas. — Eu tô com fome. — admitiu.
Jack não era sentimental, afinal, cresceu longe de toda sua família. Pela extrema pobreza, sua mãe lhe vendeu para um padre, que precisava de ajuda na igreja em um vilarejo distante. O garoto logo viu o pior que homens podem fazer por poder, na noite em que viu um servo de Deus fazendo um acordo com um monstro nas sombras, em troca de influência, daria vidas de fiéis devotos. Ao olhar o rosto da pobre criança, pensou em evitar proximidade, mas algum sentimento intrusivo o tomou.
— Vamos para minha casa. Lhe darei comida e amanhã tentarei achar esse monstro que te persegue. — disse, demonstrando compaixão que nem imaginava ter.
A criança levantou-se em um salto, como se estivesse esperando o convite do caçador. Enxugou as lágrimas e segurou em sua mão, calejada pelas vezes que teve de empunhar o aço pesado contra demônios.
Caminharam em silêncio pelas ruas, chegando em uma escadaria que dava acesso aos antigos trilhos de trem abandonados. O caminho era tortuoso, escuro e frio, mas Jack sabia que ali estavam seguros, afinal, tinha armadilhas por todos os lugares. A garota parecia estar mais assustada que antes, pois, agarrou firmemente o braço do caçador.
Durante os dias que se seguiram, Jack e a garotinha, que se chamava Lili, se tornaram inseparáveis. Ele a levou para sua casa e a alimentou, cuidou dela como se fosse sua própria filha. No entanto, Jack não conseguia deixar de notar algo estranho, como se as sombras surgissem e desapareciam em um piscar de olhos. Devido ao fato de não ter nenhum contato próximo a ninguém nos últimos anos, desde que teve que cortar o braço do padre e fugir do vilarejo em que vivia.
Jurou que a estranheza que sentirá vinha do fato de ter alguém sobre sua tutela. Perguntou a garotinha sobre seus pais e ela disse que nunca teve pais e que desde que se lembrava, vivia pelas ruas e pelos becos, tentando comer e fugir dos monstros.
— Precisamos ver o que vamos fazer. Onde você vai morar. — comentou durante a refeição. A garota comia o pão endurecido e seco, dando goles no suco de uva que o caçador havia arrumado naquela manhã.
— Mas eu gosto de ficar aqui, com você. — falou, olhando em lágrimas para Jack.
— Vai por mim, garota. Eu não sei cuidar nem de mim mesmo. Agora, come e vai se deitar, vou ter que sair.
Lili pigarreou e insistiu em ir com Jack para o mundo lá fora, sabia que não podia sair escondido por conta das armadilhas que o homem avisou que tinha escondido em todo trajeto. Mesmo após a insistência dela, o caçador se manteve firme.
A noite já caia sobre o homem, que havia demorado mais tempo do que esperava na negociação com o pescador. Descobriu que havia um casal, onde a mulher era estéril e queriam uma filha. Conseguiu algumas moedas pela negociação, dizendo que iria levar a garota para conhecer a família nova ao amanhecer. Chegou em sua casa e notou que as luzes estavam apagadas.
— Lili? — Tentou acender os lampiões, mas estava sem óleo.
Notou um brilho esverdeado vindo do seu quarto. Aproximou-se segurando a espada com força. A luz verde brilhava no pedaço de ferro afiado. Abriu com cautela a porta de madeira velha, e viu Lili encarando a parede preta em sua frente, como se estivesse conversando com alguém.
— Lili? — chamou mais uma vez, segurando o ombro magro da garota.
— Por que você me traiu, Jack? — Virou-se lentamente, seu semblante de uma sombra maldita, devido a escuridão do lugar. — Eu confiava em você, e realmente gostava de ficar aqui.
— Do que você tá falando, menina? — desconversou, atento as unhas afiadas, como garras projetadas para atacar o caçador.
— Não minta para mim. Já sei que você me vendeu. — Uma voz grave, quase inumana protestou.
A garotinha ruiva, começou a aumentar seu tamanho, ficando quase do tamanho do caçador. Seus cabelos tornaram-se tentáculos vermelhos e vivos como brasa e seus olhos como esmeraldas enormes. Jack se afastou vendo tal monstruosidade, não pôde acreditar que durante dias, abrigou tal ser desprezível. Sentiu seus pés sendo puxados e caiu bruscamente no chão frio, batendo a cabeça.
Ao abrir os olhos, notou a mandíbula cheia de dentes indo direção ao seu pescoço, girou seu corpo e se pôs de pé. Correu até sua espada e apontou a lâmina para o ser monstruoso.
— Lili, desculpa por te magoar. Eu só queria o melhor para você, não sei lidar com crianças. — Principalmente quando são um monstro que irá tentar te matar no primeiro problema, pensou.
— Mentira. Você é um monstro sem coração, tentou se livrar de mim na primeira oportunidade. — gritou em fúria.
— É verdade, eu nunca tive pai e nem mãe. Fui criado por um homem que tentou me vender a demônios, não quero o mesmo para você.
Aquela declaração tocou o coração da mulher monstruosa, ao ponto dela guardar as garras. Pôde sentir a verdade nas palavras de Jack. Ela se aproximou com cuidado, ele soltou a espada aceitando um abraço.
— Somos iguais. Você não vê? — A voz feminina voltou a ser carinhosa e acolhedora.
As lágrimas saíram dos olhos cinzentos, e ele se envolveu nos braços frios e pálidos que o cobria. Todo dor e todos os seus problemas cessaram ali, onde finalmente encontrou sua razão de viver. A mordida em seu pescoço, injetando o líquido espesso e negro em suas veias não lhe causaram incômodo.
— Agora somos um, Jack. Como um só ser. — A mulher o beijou, de forma apaixonada.
O cheiro de gás e o chiado da faísca foram rápidos. Seguidos por uma explosão em todos os trilhos de trem. O pescador seguiu o caçador e viu a figura monstruosa. Temendo por ser morto, vazou o gás da tubulação que percorria aquele túnel e acendeu um fósforo, dando fim em todo aquele caos.
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Os Monstros das Sombras - Conto
Kısa HikayeLondres, século XVIII. Tudo pode se esgueirar e passar despercebido pela escuridão, todos os tipos de monstros. Seres que nenhum ser humano seria capaz de enfrentar, exceto Jack. Nas ruas cinzentas e macabras, ele encontra uma garota desolada e com...