CAPÍTULO UM

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HarminAno 928

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Harmin
Ano 928

          Descobri uma doença no sangue e tudo mudou. Não posso dar dois passos sem morrer esbaforida e o tratamento me faz inchar igual à massa de pão que descansa por uma semana inteira. Para piorar, minha mãe arrumou um emprego na inóspita província de Adiren e terei que ficar na casa de um tio distante chamado Apolinário. Nada de bom pode vir associado a um nome desses.
          Andar pelo centro de Harmin se tornou uma verdadeira prova de resistência, desde que a família real decidiu eleger esse fim de mundo como sede do Yal. Após as colheitas da estação, produtos de todos os cantos são trazidos para cá e centenas de pessoas se amontoam tentando comercializar suas mercadorias. Para minha sorte, conheço cada beco daqui.
          Seria impossível passar perto da residência real, porque a maioria dos comerciantes está instalada nos arredores, restando apenas duas opções para contornar o centro e ir em direção ao sul. A primeira é conhecida como caminho das moças, já que dia e noite, garotas órfãs tentam conquistar a clientela. Nada contra, mas não estou disposta a ser confundida e ter que acertar a cara de algum engraçadinho. Tem que ser pelo Vale.
          O chamado Vale, é uma rua de pedras retangulares, posicionadas lado a lado de maneira quase simétrica, com árvores cercando ambos lados, de tal modo que parece um bosque coletivo e é comum mulheres de famílias ricas passearem com seus criados pessoais. Há pelo menos quatro luas, evito colocar os pés ali, desde que me pegaram roubando os pertences de um próspero produtor da região sul. Levei o dia todo para escapar de seus capangas e jurei que concentraria minhas atividades em locais menos óbvios.
          Fico feliz por deixar o amontoado de gente para trás e sigo para meu destino incerto, onde a brisa do mar dá lugar ao cheiro cítrico das árvores que me rodeiam. Sozinha com meus pensamentos, me pergunto o porquê de minha mãe achar que não consigo cuidar de mim mesma e pior, tento imaginar a verdadeira razão para me enviar a um parente cujo nome nunca ouvi na vida.
          Bem, está feito! Depois de andar um dia inteiro, aqui estou.
A primeira impressão sobre o meu futuro lar me faz pensar que devo ter errado de endereço. Nunca tivemos luxos; minha mãe costurava noite e dia apenas para manter o mínimo necessário, mas agora, diante de mim, se ergue uma casa de madeira tão deteriorada que mal reconheço como habitação. Não há porta; apenas buracos vazios permanecem onde um dia devem ter existido janelas.
          Sem uma ideia melhor, decido andar em direção ao pesadelo, mas sou empurrada por mãos invisíveis, como se eu fosse feita de metal maciço e um gigantesco imã me puxasse em sua direção. Cá estou eu sendo arrastada como uma marionete sem cordas e, quando penso que nada pode piorar, perco o equilíbrio e caio de bunda. Para que pernas se eu posso deslizar, não é mesmo?
           Enquanto me concentro na tentativa de agarrar qualquer coisa que possa me impedir de ser levada para o desconhecido, minha visão se torna turva e posso jurar que o casebre não está mais onde deveria estar.
          Esfrego os olhos, depois de o ser invisível ter se cansado de me puxar, mas nada do que vejo faz sentido.
         Imóvel igual à uma estátua, vejo uma mansão que se desenha à minha frente. São três pavimentos construídos de pedras que emitem um estranho brilho alaranjado. Conto ao menos vinte janelas e o jardim que a rodeia exibe plantas que nunca vi em vida.
          Eu talvez não esteja enlouquecendo, já que do local para onde estou encarando, surge uma senhora rechonchuda envolta em farinha. Quando me vê, larga a cesta e corre em minha direção, deixando uma nuvem branca no ar. A cena é tão absurda, que mais parece um animal recebendo o dono, após ter passado o dia solitário.
          Por causa de suas pernas curtas, chega ofegante, mas só depois de me esmagar é que se lembra de limpar o avental, o que me faz ficar coberta pelo pó branco, como se fosse uma fantasia assustadora.
        — Não acredito que é você mesma! Não a vejo desde que era desse tamanho. — fala sorrindo enquanto aponta para os joelhos cheios de varizes —Venha! Preparei sua torta favorita, Dolores!
        —Todo mundo me chama de Lore — digo o mais calma que consigo, tentando não demonstrar o quanto eu odeio minha mãe por ter escolhido esse nome maldito.
         Sem muita alternativa, sigo a senhora que se apresenta como Dona Mima. Conforme explica a anfitriã, entramos pela porta de serviço para não atrapalhar os estudos do tio Apolinário que, a essa hora do dia, prefere o silêncio da biblioteca.
         Assim que coloco os pés no primeiro cômodo, um cheiro familiar desperta o melhor em mim: torta de kala. Aquela frutinha azeda que só cresce uma vez a cada três anos nas colinas de Haij. Nunca gostei de bolo de aniversário. Ou são secos ou doces demais, de tal modo que descobri nessa receita, o quitute perfeito para celebrar a passagem dos anos. Quase solto um gemido de satisfação, ao saborear a quinta fatia do manjar inesperado.
         Enquanto me esbaldo, tenho tempo de observar o ambiente e para uma mansão dessas, a cozinha não é lá muito grande, embora seja equipada com um forno de pedra, igual ao que minha mãe sempre sonhou em ter. Uma mesa de madeira rústica, gasta pelo tempo e pelo uso, ocupa o centro do cômodo, rodeada por cadeiras que rangem quando movidas. Na bancada de madeira ao lado, ingredientes frescos e coloridos aguardam, suas cores vivas contrastando com o esquema de cores desbotadas do restante da cozinha.
          Ouço uma sucessão de espirros e desejo saúde, como qualquer pessoa faria, mas ao olhar para Dona Mima, percebo que ela continua cantarolando enquanto prepara o guisado. Outros dois espirros se sucedem e tento encontrar qualquer pessoa que possa estar por perto, mas não há ninguém.
          Quem diabos está espirrando?

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