CAPÍTULO CINCO

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           A voz distante de Dona Mima gradualmente me traz de volta à realidade, como se eu estivesse emergindo de um sono profundo. Preciso piscar várias vezes antes de focar na anfitriã e na cama macia em que estou deitada. Será que dormi aqui no quarto e tudo não passou de um sonho macabro?
          Sacudo a cabeça para esquecer a imagem da mulher morta e de sua assassina, mas paro no meio do caminho ao sentir um cheiro, que só pode ser descrito como divino, invadir minhas narinas, provocando uma salivação além do normal.
           — Dolores, queria, fiz uma receita especial em sua homenagem. Espero que goste.
           — Com esse cheiro maravilhoso? Claro que vou amar!
Enquanto observo a anfitriã arrumar uma bancada para colocar a bandeja, percebo que me enganei com relação à sua idade, ela não parece tão velha, talvez esteja na casa dos cinquenta anos, mas o rosto quase não tem rugas. Interessante como o contraste entre a pele e os cabelos brancos como a neve me confundiu tanto.
           Tenho que parar com a observação, pois não acreito no que minha anfitriã traz em suas mãos. Sem esperar que me entregue, puxo o roupão de suas mãos e o envolvo ao meu corpo como se fosse um tesouro há muito perdido. O toque do tecido de qualidade desperta memórias distantes, como aquela vez em que minha mãe recebeu uma encomenda para um casamento real.
           — Achei que não fizessem mais tecido em Miff! — digo com a voz incrédula.
          Minha mãe contava que no auge do domínio Miffiano, artesãos com poderes mágicos criaram um tecido jamais visto, cuja maciez era equivalente a cama da própria deusa Kalliz e, por séculos, as vestes da realeza foram confecionadas com esse material. Nunca acreditei em magia — é claro —mas ao sentir o traçado e sua suavidade, começo a duvidar de que foi feito por mãos humanas. 
          — Esse está na família há muitas gerações. Talvez seja um dos últimos que ainda restam por aí. — Uma breve pausa me deixa sem saber o que fazer. —  Olhe só para você, minha querida menina. Cresceu tão rápido, mas para mim, ainda é aquela menininha que costumava falar sozinha enquanto brincava. Me lembro como se fosse hoje, você tinha o que? Uns 3 anos, eu acho. Você pegou minha colher de pau e fingiu que era uma espada mágica para proteger nosso castelo imaginário aqui na casa. Ah, como você adorava inventar histórias e aventuras.
          — Eu morei aqui? — Essa informação parece absurda e sinto meu corpo tensionar como se tivesse levado um soco no estômago.
           — Sim, você e Abigail moraram com a gente até s seus quatro anos.  — suspira como se estivesse revivendo o momento. — Foram anos divertidos e barulhentos. Ficou um silêncio tão grande depois que vocês se foram, nada nunca mais foi o mesmo. — Como se lembrasse que está falando demais, fecha o sorriso.
          Enquanto escuto a voz calorosa de Dona Mima, minha mente se perde em pensamentos confusos. A ideia é tão absrda que mal sei por onde começar. Minha vida, até onde lembro sempre foi minha mãe, assim como a fome, as ruas e a solidão. Não havia espaço para uma infância feliz em uma mansão como essa.
           Se tudo isso fosse verdade e minha mãe tivesse me mantido afastada de Dona Mima, dessa casa e dessas lembranças, a sensação de traição me atingiria como uma punhalada silenciosa.
           — Vou deixá-la à vontade para se trocar e jantar. Durma bem, minha querida.
           Seu beijo em minha testa é tão puro que é impossível não embrar de minha mãe. Suspiro, tentando focar em outra coisa, pois não quero me permitir ser inundada pela saudade e muito menos por suspeitas, sem que minha genitora possa se defender. Por toda nossa relação, darei a ela um voto de confiança.
           Para acalmar uma mente inquieta, só colocando ela para trabalhar e é isso que planejo fazer. Vamos ver que tesouros esse quarto de princesa me revela.
           O cômodo está ilumnado apenas pelas velas do lustre acima da cama, e deixo meus olhos curiosos vagarem pelas riquezas expostas. Meus dedos traçam os contornos do mobiliário e cada toque revela o potencial de lucro. Até as cortinas parecem sussurrar “me venda por uma fortuna!” No entanto, é o baú aos pés da cama que me seduz com seu apelo misterioso.
           Com movimentos cuidadosos, ergo a tampa e sou saudada por uma cascata de tecidos que fazem com que qualquer costura feita por minha mãe pareça trapos em comparação. Os materiaismacios e luxuosos desafiam a própria essência da minha existência.
           Eu, que pensava já ter visto de tudo na minha vida de ladra, estou prestes a fazer a venda do século, e a ideia de todas as moedas que esses tecidos podem me render me faz dar um sorriso de pura ganância.
Então, uma voz desconhecida sussurra:
           — A chave, Dolores. A chave!
          No início, minha resposta é de desprezo, uma recusa instintiva em lidar com o desconhecido, afinal a esta altura já estou mais do que acostumada a ouvir vozes por aqui.
          — Mas que porcaria! Não quero saber de chá... —  paro de falar no meio da frase, depois de perder a linha de raciocínio, porque uma chave dourada acaba de se materializar flutuando na minha frente.
     

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