A geladeira no porão

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Ser independente não é novo para mim, apesar da pouca idade que tenho. Desde pequeno meus pais saíam para trabalhar e minha tia cuidava de mim, mas aprendi tudo que sei sozinho. Com o tempo, passei a tomar conta da casa, fazendo minha própria comida e limpeza.

Arrumei meu primeiro trabalho aos 16 anos e me mudei para uma casa pequena que tinha no terreno dos meus pais, ela era usada como depósito de bagunça, o que também foi ótimo porque algumas coisas serviram para montar meu canto.

Meus pais não implicaram sobre eu querer testar minha independência, desde que fosse responsável e usasse o bom senso. Sem contar que, de certa forma, eu ainda estaria lá e eles poderiam me vigiar pela janela.


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As tralhas foram pro lixo. Eu limpei e pintei tudo, coloquei minha cama, uma mesa, meu armário e a geladeira, dentre outras coisas. Voltar do trabalho e olhar o cômodo me fez sentir um adulto completo.

Joguei a comida na mesa e fui tomar banho, depois preparei minha janta e guardei o restante na geladeira. Fui me deitar para o próximo dia de escola e trabalho; inclusive, estou dando conta dos dois muito bem. Confesso que em toda minha vida nunca me senti tão livre.

A rotina foi essa: escola, trabalho e casa. Não esperava nada de diferente, até encontrar um porão dentro da minha casa. Eu fiquei perplexo de não tê-lo visto antes: era uma pequena abertura entre uma madeira e outra, quase imperceptível. Só percebi pelo barulho oco na hora de mover um móvel que o som era diferente, como se um buraco fosse abrir e me engolir caso pisasse mais forte.

Peguei uma faca e coloquei entre uma madeira e outra, a porta se abriu como a de qualquer porão comum, revelando uma escada que levava a uma escuridão infinita. Liguei a lanterna do celular e desci. Poeira pesada agarrava objetos arcaicos enquanto caminhava no pequeno lugar.

Era realmente pequeno, fiquei curioso com tudo aquilo. A maioria das coisas era apenas objetos vetustos, exceto por uma geladeira que não parecia ser nem um pouco velha. Isso me chamou a atenção, pois meus pais mal entravam naquele lugar antes de ser minha casa e com certeza não sabiam do porão, então como uma geladeira atual poderia estar ali?

Seja como for, limpar já fazia parte de mim e foi o que fiz com o novo lugar. De certa forma, fiquei feliz de ter um lugar que provavelmente ninguém sabia da existência. Com meu conhecimento básico de eletricidade consegui ligar a geladeira e colocar uma lâmpada no lugar.

Após o ocorrido minha vida voltou ao normal. Bom... não exatamente. Eu não conseguia tirar o porão da minha cabeça, ali eu me sentia como se fosse invencível. O lugar me deixava entorpecido de uma estranha adrenalina e bem-estar.

Cheguei em casa. Joguei as coisas na mesa e fui almoçar no porão, como passei a fazer todos os dias.

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Voltei faminto do trabalho aquela noite, meu estômago se contorcia de fome. Já fazia muito tempo que não via os meus pais ou qualquer colega (que convenhamos, não tinha muitos), estava me dirigindo ao porão quando escutei baterem à porta.

— Quem é? — perguntei desconfiado.

— É a polícia, poderia por favor abrir a porta?

Andei rápido e abri. Eram dois policiais com uma expressão séria.

— Oi? — disse sem jeito. — Como posso ajudar?

— Podemos entrar?

— Claro! — respondi sem hesitar.

Os dois sentaram-se e eu preparei um café enquanto eles falavam que bateram na casa dos meus pais, mas não havia ninguém. Enquanto isso eu fiz um macarrão bem rápido e sentei-me junto a eles. Ambos recusaram a refeição.

— Mas o que vocês querem com meus pais?

— Jovem, qual seu nome?

— Alan.

— Alan, seus pais não aparecem há dias no trabalho. Algumas pessoas estão desaparecendo faz muito tempo e uma investigação foi aberta. Como você, sendo adolescente, não percebeu a ausência dos seus próprios pais?

Ele parecia desconfiado, mas eu expliquei como cresci sozinho e sobre a minha rotina que já era como a de um adulto. Enquanto explicava, eu só sabia pensar em como estava preso no meu mundo de faz de conta sem perceber nada do que estava acontecendo ao meu redor.

— Queremos investigar sua casa e a do seus pais para ver se encontramos pistas ou algo que ajude na apuração.


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Eu mostrei onde ficava a chave escondida para a casa dos meus pais e deixei a chave da minha casa com um dos investigadores enquanto fui para mais um dia rotineiro. Claro que não fiquei nada bem, eu só sabia pensar no pai e na mãe, e se alguma coisa tinha acontecido.

Quando cheguei em casa, à noite, um dos policiais disse não ter encontrado nada. Eu fiquei paralisado sem saber como reagir.

— Escute, jovem. Perdi os meus pais muito cedo e não soube como reagir, eu só negava a morte deles na minha mente. Você vive de um jeito diferente quando seus pais estão... vivos, mas quando não estão você se sente totalmente sozinho no mundo, como um órfão.

Fiquei quieto. Eu já me sentia sozinho no mundo há muito tempo. Não era próximo deles, mas aquilo era demais pra mim e eu apertava o choro na garganta, embora algumas lágrimas caíssem.

— Vocês não sabem se eles estão mortos.

— Tem razão, mas encontramos um cadáver. Foi homicídio e isso basta para sabermos que tem um assassino à solta, o que justifica os desaparecidos.

Fiquei quieto.

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Eles tinham verificado tudo e nenhum sinal deles foi encontrado. Entrei em casa e só precisei voltar algumas coisas pro lugar, pois eles haviam mudado conforme deslocaram para analisar. Dessa vez eu não trouxe nada para comer, mas tinha comida na geladeira do porão.

Desci ao porão quando tudo ficou quieto e finalmente estava sozinho. Abri a geladeira e peguei meu prato feito, sentei-me na escada do porão pensativo sobre o corpo que eles encontraram. Tinha um outro assassino por aí.

Isso era ótimo, pensei enquanto comia o coração de um desconhecido. A polícia iria associar tudo a esse cara e não ficariam mais no meu pé. Porém, não foi eu que matei meus pais.

"Tem muitas pessoas nesse mundo e sei que fome não vou passar", pensei enquanto voltava o prato na geladeira e olhava algumas cabeças e partes humanas que guardei daqueles desaparecidos.

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