A criação

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"Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente", é assim que, em Gênesis 2:7, foi descrito a criação humana pela ótima cristã.
Uma vez apresentado isso, como seria a criação pagã? Essa traz em sua essência traços mais naturais que a cristã, uma vez que se imagina que uma mulher criou tudo, fazendo alusão ao que é visto até os dias atuais, onde o femino gera a vida dos novos humanos. O papel femino na geração da vida sempre exigiu da mulher certa pincelada divina, são elas que formam os órgãos e os tecidos de outro ser vivo, que os protegem e carregam dentro de seus ventres quando eles próprios não podem fazer nada por si mesmos. Elas deram a dádiva da vida a todos que já nasceram e que vão nascer, e sem seu trabalho duro, nenhuma criança nova chegaria ao mundo. Então quando se imagina como a primeira alma vivente surgiu no planeta, não seria mais natural imaginar uma mulher dando a luz que um homem soprando fôlego de vida? É nisso que Agatha acredita.

O processo de fazer um boneco de madeira não era de um todo fácil e manter os tão desejados traços delicados que ela queria em seu filho parecia ser impossível usando uma matéria prima tão bruta. A bruxa trabalhou alguns meses na sua criação até finalmente ter certeza que estava perfeito. De fato estava, mas depois do ritual, Agatha não parecia tão confiante. Deitou-se nua no meio do pentagrama e chorou agarrada com o boneco ainda totalmente de madeira.

- O que eu fiz de errado!?

Se lamentava aos prantos, queria que seu neném fosse real, queria que ele chorasse em seus braços. Imaginou que talvez Salomé a tivesse enganado, com certeza tinha. Chorou mais e mais fazendo a terra solta da floresta sujar seu rosto e a roupa que ela própria havia costurado para seu boneco. Assim se passou horas, até que a bruxa se cansou de chorar pelo seu fracasso, ou melhor, que fracasso?
Agatha nunca errou, então o erro estava no feitiço.
Segurou firme o boneco nos braços como se já fosse uma criança e começou a caminhar em direção a casa de Salomé. Iria tirar satisfações. Os pés batiam firme contra o solo, tão firme que ela mal podia ouvir os sons ao redor. Estava cega de raiva, uma raiva descomunal, até que algo fez toda a raiva se esvair como um sopro. Sentiu uma pequena pressão na pele de seu antebraço. A mãozinha fria de madeira pareceu se mexer. Agatha afastou o boneco de seu corpo com esperança brilhando em seu ser. Analisou todo o serzinho e percebeu os pequenos olhinhos, antes fechados, tentando se abrir. Abriram. Eram olhos humanos. Lindos olhos azuis cor de céu, que a fuzilaram. Ela se derramou em lágrimas sentando-se no chão da floresta.

- Você pode me ouvir? Consegue me entender? Pode falar, neném?

Sem nenhuma resposta. Ela tinha toda a atenção voltada para o garoto e reparou na pequena área ao redor dos olhos, que parecia uma espécie de borracha. Não parecia ser pele humana, mas já não era madeira puramente. Os olhos azuis pareciam adorar Agatha como criadora, e ao perceber aquilo sentiu, pela primeira vez, a sensação de poder subi-lhe a cabeça fora de um ritual.

- Eu sou sua criadora, você sabe disso? Eu fiz você. Eu... Você é lindo. É lindo, querido. Você é meu títere. Isso mesmo, Títere... Seu nome será Títere. Você é minha imagem e semelhança.

Arrumou uma mecha dos seus cabelos pretos e sorriu para o menino com um charme eminente no olhar. Olhos de caçadora que desenhavam o boneco como uma presa para seu narcisismo e como válvula de escape para suas vontades.

- Mamãe vai cuidar de você. Vamos pra casa, anjinho. Vamos pra casa.

Títere (mdlb)Onde histórias criam vida. Descubra agora