2. Primeiro A Cura

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Um mês após a morte de Cristina Chanko

Certeza inabalável, coturnos reluzentes, semblante sério e coque casual compunham o traje ideal para a visita ao novo consultório da cidade.

Doma hesitava antes de bater na porta de vidro. Felizmente, uma senhora na casa dos sessenta anos irrompeu em sua visão, aproximando-se em passos curtos e rápidos para atendê-la. A porta rangeu em hesitação mútua, liberando o ar frio.

- Boa tarde, querida. - A idosa ostentava um sorriso impecável de quem não se rendia à cafeína diariamente. - O Dr. Santinelli... - Uma leve sombra de descontentamento lhe anuviou o rosto por um momento. - Está um pouco atrasado, receio que você terá que esperar. - De súbito, o sorriso voltou ainda mais intenso. - Mas não se preocupe, prepararei um chá delicioso enquanto esperamos. Alguma preferência? - Ela tilintava em ânimo por uma resposta.

- Muito obrigada pela genti...

A sexagenária agitada a interrompeu, abalando o sossego de Doma.

- Oh, não! Minha querida - Doma já começava a se irritar com a postura exageradamente doce da mulher. - Me desculpe pela falta de gentileza.

Falta de gentileza?

- Me chamo Vera, mas pode me chamar de Dona Vera - disse ela, colocando a mão sobre o peito em um gesto de formalidade. - Sou a secretária do consultório de psicologia do Dr. Santinelli. É um lugar novo, dê uma olhada, leve o tempo que precisar.

Doma virou-se de soslaio para observar os cantos do ambiente. Poltronas de couro acolchoado e plantas claramente artificiais - apenas para dar um toque de cor - jaziam imóveis. No centro da parede, uma televisão de tela plana exibia um documentário criminal.

Uma onda de ataques contra as instituições de segurança da pequena Durango assolava a cidade há alguns meses, com frequência cada vez maior. As autoridades, no máximo, sugeriam um toque de recolher noturno. Na percepção dos moradores, a polícia se mostrava medrosa e corroída pela falta de investimentos públicos - E, nisso, estavam certos. - O medo real, porém, advinha da exclusão dos federais na investigação da facção responsável pelos ataques. Era evidente que uma sequência de demissões em massa por incompetência seria acarretada em tempo recorde.

Sentada em uma poltrona confortável, Doma acompanhava com os olhos vidrados mais um dos ataques que ganhava repercussão na mídia. A jovem revirava os olhos com desdém.

São urubus atrás da carniça. Nada de novo sob o sol.

Doma nem sequer percebera a ausência de Vera. Uma pigarreada leve e sinuosa a tirou de sua imersão, fazendo-a piscar confusa.

Os desgraçados são bons mesmo em prender a atenção.

O ensino médio estava sendo uma moleza para Doma. Ela pretendia ir além, impressionar a todos. Estudar jornalismo e destacar seu rosto esbelto em tevês como aquela. Um sorriso sutil escapou ao lembrar da total aprovação e incentivo que recebia de sua mãe. Descanse em paz, murmurou.

- Aqui está o seu chá, querida. E este é o meu. - Dona Vera fez questão de pegar duas xícaras de aparência delicada. Só pela aparência e design de Cisne, exalavam preço. Uma verdadeira coleção.

Doma estranhou o tratamento, mas ao primeiro gole, teve certeza. Seus olhos arregalaram-se, incrédulos.

- É chá de gengibre! - A jovem mostrou os dentes de orelha à orelha em gratidão extrema. - É o meu favorito, minha mã... Como você sabia? - Instantaneamente, desvencilhou a feição alegre e a transformou em dúvida e descrença. Velha estranha...

- Tem coisas que eu simplesmente sei, querida. Aproveite o chá. Eu poderia ficar horas falando sobre o preparo dos meus.

- O tempo é nosso aliado. - E Doma tomou mais um gole.

- Bem... essas xícaras são minhas preciosidades. - Vera levou os dedos à bochecha que havia corado. - São da linha tradicional Meissen Swan. É pouco conhecida.

- Deveras elegante! - Doma assentiu, entrando na descontração, como duas senhoras ultra casuais. Como ela as adquiriu?, questionou-se mentalmente.

- Bem, foi o meu chefe que me deu. Ele é um rapaz cavalheiro e gentil.

Um Rapaz?

- Receio ter me enganado pela foto daquele quadro na parede. - Doma apontou para trás de Vera. - O Dr. Santinelli aparenta ser mais velho.

O cenho franzido da idosa se aprofundou em um vinco amargo ao perceber o documentário na televisão. Seus olhos, antes serenos, agora faiscavam com uma irritação mal contida. A busca pelo controle remoto se assemelhava à de um predador faminto rastreando sua presa. Uma, duas, três vezes ela trocou de canal, mas nada adiantava. A pauta da semana era onipresente. Com um suspiro resignado, desligou o aparelho e readotou a máscara de docilidade, como se fosse sua "expressão padrão".

Dona Vera deslizou pela sala de porcelanato refinado com a leveza de uma almofada. Abrindo a porta, ergueu a mão direita em um gesto submisso. Um homem alto, ostentando barba grisalha e bigode imponente, adentrou o consultório.

- Bem-vindo, Dr. Santinelli. - Ela sussurrou. - Sua primeira paciente chegou há alguns minutos. Está é Do-

- Chanko, Doma Chanko. - O doutor interrompeu, sua voz firme contrastando com a postura hesitante. - Já conversamos por telefone. Então não se preocupe, Dona Vera, a partir de agora assumo o comando. Agradeço por ser uma recepcionista exemplar.

O sotaque do Texas de Santinelli fluía como um rio caudaloso, acariciando os ouvidos da recepcionista carente. A troca afetuosa entre os dois fez com que Doma se retraísse em uma concha de desconfiança. Sentia-se deslocada, um peixe fora d'água nesse mar desconhecido. Eu preciso mesmo disso?

- Siga-me, Srta. Chanko. - O médico ordenou, seus passos firmes e implacáveis quase a deixando para trás.

* * *

Doma se afundou na poltrona retrátil, ainda se sentindo uma intrusa. Seus olhos gravitavam em torno de Dr. Santinelli, que se acomodava com naturalidade, como se estivesse em seu próprio habitat.

Por que não estaria? Pensou ela com amargura. É o trabalho dele.

Ele cruzou as pernas, apoiando a direita sobre a coxa. Uma caderneta repousava ao lado da mesa de vidro, junto a uma caneta que tilintava nervosamente entre seus dedos.

O que ele vai anotar? Doma se perguntou, suas cogitações girando em uma espiral de ansiedade. Somente o que eu falar?

- Bom! - A voz estrondosa de Santinelli a assustou, quebrando o feitiço. - Que tal começarmos do início? Do começo de tudo que você me relatou por telefone: a morte de Cristina Chanko. Sua mãe.

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