1. Abstinência É Doce

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Quatro meses após a morte de Cristina Chanko

Correndo incessantemente pelas ruas escuras, a garoa forte a impedia de suar. Não havia tempo para sequer notar a dor latejante em sua cabeça, e as poças d'água não eram problema para seus longos coturnos. Os trovões cortavam o céu, trazendo a única iluminação, pois os postes da cidade estavam quebrados há tempos. Uma pequena cidade é assim.

A dor de cabeça aumentava com a aceleração de seus passos. Seus longos cabelos castanhos, antes presos, se soltavam com a turbulência e grudavam em seu rosto molhado. Não havia tempo para parar, ela não queria parar. Sua abstinência não permitiria, jamais.
Com os olhos penetrantes que ansiavam por uma luz, finalmente a encontraram. Já era a terceira quadra que percorria desde que saíra de casa, sua única referência geográfica. Os velhos carros dos anos setenta estavam estacionados, sem um pingo de luz. Ela se limitava a revirar os olhos até que finalmente encontrou algo.

A fachada enorme ostentava o nome "Castanõ", o comércio "provedor de tudo" da cidade. Realmente tudo que os moradores de Durango poderiam precisar. A luz que incendiava sua visão vinda de dentro também revelava a escassez de clientela, não apenas devido ao horário. Isso a deixou ainda mais urgente, adotando a postura de uma verdadeira corredora.

Pisando firme, quase caindo para o lado, ela cessou sua "maratona". Finalmente podia descansar. Era de suma importância manter a postura, por isso não se deu ao luxo de simplesmente adentrar o estabelecimento. A sensação era comparável a concorrer uma corrida de cem metros sem nenhum concorrente. As mãos apoiavam-se nos joelhos e as mechas molhadas irregulares recaíam. E era possível ouvir um som dissonante e ao mesmo tempo ensurdecedor, que não era apenas a latejante dor de sua cabeça, agora mais do que perceptível. Havia uma vibração aguda como um miado de gato, e de repente vários preenchiam sua audição.

De todas as cores e estampas, ostentando com beleza sua fome, vários gatinhos estavam enfileirados em cima das latas de lixo. Encontravam-se ao lado da porta de vidro na entrada da Castanõ. Com o olhar de soslaio da garota, se notava entre quatro a seis. Mas o que de fato lhe chamava a atenção era a gata preta sozinha que a encarava de longe com seu único olho, o direito, bem em cima da fachada do outro lado. Desta, não se ouvia miado.

- Eu prometo, vou trazer algo para acalmar o estômago, principalmente o seu. - Apontou para a fachada com um sorriso tímido.

Através da porta de vidro embaçada pela chuva, reconheceu o garoto no caixa, curvado sobre o balcão. O cansaço era evidente em sua postura. Seus olhos baixos expressavam o desejo de dormir. O silêncio era absoluto.

Plim! Plim!

Ao abrir a porta, o garoto se assustou. A lembrança dos ensinamentos do chefe o fez se recompor rapidamente.

- Doma! Pare aí! - Saiu de detrás do balcão gesticulando. - Preciso pegar um pano para limpar a sujeira que você está trazendo. A que horas você aparece?

- Não te interessa. - Doma sorriu ironicamente, mas logo se arrependeu. - Desculpe, Joe. Você sabe o que quero. Ultimamente, preciso disso cada vez mais. É como se estivesse afundando em um poço sem fundo.
Doma caminhou cambaleante, ignorando o tapete de boas-vindas desgastado. As marcas de seus coturnos sujavam o chão limpo da Castanõ. Joe, resignado, reprimiu a raiva e a substituiu por compaixão.

- Eu preferia a visita de um fantasma. Às vezes, acho que meu avô deveria fechar essa bodega. - Joe gesticulava enquanto acompanhava Doma com o olhar.

- Joe, ele te ama e está preocupado. - Doma percorria os engradados com lentidão.

- Eu sei, eu sei. O velho é gente boa. Mas... espere aí! Eu ia repor os remédios amanhã. - A voz de Joe se distanciava enquanto ele se dirigia aos fundos. A frequência das visitas de Doma para comprar medicamentos não passava despercebida por ele.
Com repulsa, Doma pegou duas Odells, aproveitando a promoção do verão. Seus passos de volta ao balcão eram carregados de culpa ao ver as marcas de barro vermelho que deixava pelo caminho.

- Sinto muito, Joe.

No armazém dos fundos, a bagunça reinava suprema. A luz fraca que entrava pelas frestas da porta mal iluminava o caos de caixas empilhadas, embalagens rasgadas e ferramentas espalhadas pelo chão. Joe já sabia o que encontraria antes mesmo de abrir a porta, e a irritação o consumiu como um fogo.
Preguiça! Joe bufou, resignado.

A organização do local era sua responsabilidade, e reclamar do próprio fracasso seria redundante e inútil. Mais do que isso, era contra sua natureza. Ele resignou-se a perder um bom tempo procurando o que precisava, talvez até mesmo refletindo sobre seus erros.

Só quando chegou ao balcão Doma se deu conta do silêncio frio que pairava sobre a Castanõ.

E aqui estava o safado, pendendo para um lado, quase como a bela adormecida.

Doma aproveitou a deixa para analisar o monitor à direita da cadeira desacolchoada de Joe. A tela se dividia em quatro imagens: uma para a seção de engradados onde ela estivera, outra para a seção de alimentos, a seguinte para os medicamentos - completamente vazia - e, finalmente, a do armazém, onde Joe se encontrava descabelado e impaciente. Doma não pôde conter um leve sorriso.

Na última tela, a do lado de fora, a câmera estrategicamente posicionada mostrava a rua escura e chuvosa. Em meio à noite inebriante, era possível distinguir os gatinhos refugiados nas latas de lixo, suas bocas abrindo e fechando em miados insistentes.
Doma levou a mão à boca, lembrando-se do conselho insólito de seu psiquiatra. Na última sessão, ele recomendara com sua voz irritante e pedante que ela se "afastasse de toda a tristeza". A garota revirou os olhos e o estômago ao mesmo tempo.

Impossível. A tristeza está em todo lugar.

Ao semicerrar os olhos, Doma notou algo a mais: a ausência da gata preta caolha no fundo da imagem.
Antes que a culpa a consumisse, as luzes externas se apagaram subitamente. Virou-se para a esquerda, para a rua, mas as luzes da frente da loja ainda estavam acesas. Voltou para o monitor, e a tela da seção de alimentos piscou três vezes antes de voltar a funcionar. O coração de Doma acelerou diante do que via, incapaz de acreditar.

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