3. Pesadelo

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Quatro meses após a morte de Cristina Chanko

Joe, com a meticulosidade de uma governanta experiente, organizava o armazém, alheio ao tempo e ao espaço ao seu redor. Liberto em muitos aspectos, sua mente ainda se prendia à sua amiga, confinada do outro lado da parede. Uma estante improvisada bloqueava a passagem, e a estranha eficiência do isolamento acústico, somada à ausência de janelas, corroborava a teoria mirabolante que tomava conta de seus pensamentos.

Há ha! O velho era um metaleiro.

Ao abrir mais caixas empoeiradas, um turbilhão de nostalgia o dominou. Fotos da adolescência do Sr. Castanõ com seus instrumentos musicais encheram seus olhos. Cartas de amor trocadas com sua amada despertaram em Joe um sentimento de invasão, mas ele não resistiu à tentação de lê-las. A guitarra, veterana - talvez até mais do que ele - jazia ali, suas cordas desgastadas testemunhas de uma época longínqua.

O que eu estava procurando mesmo?

Doma, dentro do armazém, sentia a tensão sufocá-la como um aperto em seu pulmão. São os efeitos da abstinência dos medicamentos. Não havia tempo para reflexões, sua segurança estava em jogo.

Na última câmera do monitor, na seção de alimentos, um vulto corpulento se destacava na imagem desfocada. O rosto desfigurado, os poucos cabelos ruivos desgrenhados, e o corpo envolto em um traje pesado de panos pretos e velhos compunham uma figura aterrorizante que a emudeceu instantaneamente.

Como ele entrou aqui? A pergunta ecoava em sua mente. A parede ao lado do vulto apresentava um enorme buraco, suficiente para a passagem de um pitbull adulto pelas rachaduras da porcelana que restava, expondo a estrutura de tijolos e o pó que manchava o chão de barro.

Droga! O que eu faço? Gritar por Joe? Ele vai me ouvir? Afinal, quem é esse cara?

A sorte sorria para Doma. A iluminação precária do armazém e sua audição aguçada lhe davam uma vantagem crucial. A porta à sua direita parecia uma saída fácil demais.

Eu não vou deixar Joe aqui. A decisão de Doma estava tomada, assim que ela pisou na Castanõ.

As sessões com o Dr. Santinelli esculpiram a garota de maneira surreal. Sua coragem era titânica, porém cega. Doma avançou triunfante, mas após o primeiro passo em direção à criatura horrenda e destruidora, recuou. Seus passos, agora sussurros furtivos, eram abafados pelos coturnos secos, que não mais rangiam contra o piso empoeirado.

Ao passar pela seção de cuidados de beleza, um pensamento intrusivo a assolou: Preciso comprar um xampu novo... Puta merda, vou morrer.

Dedilhando a estante vazia de remédios, sua visão se aguçou, acurando a nitidez do monitor. Uma tentativa falha de olhar para trás foi frustrada pelo ângulo do monitor, a cento e quinze graus à direita, bloqueando a visão da sessão em curso. Mas seus cálculos mentais indicavam que a distância entre ela e o vira-latas humano não ultrapassava três metros. O suor frio tomava conta do seu corpo.

Ele não se escondia. Nem as batidas frenéticas na parede, o caminhar desajeitado e o som agudo de frascos de remédios se espatifando no chão o intimidavam. Doma se retraiu, apoiando as mãos na estante e fitando o relógio, seus músculos se afrouxando por um breve momento.

Como que duas horas se esvaíram em um piscar de olhos? E seus músculos se contraíram novamente em terror, dessa vez com mais intensidade. Quase escapou-lhe um grunhido, que seria fatal.

Tentando respirar, o ar exalava medo - e também o fedor fétido de medicamentos e alimentos misturados. - Com sucesso, ela recobrou o controle interno, à custa do externo.

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