Um quarto escuro

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                                                            21 de Novembro do vigésimo nono ano de Aurora

Raphael,

Eu estou com medo. Há três dias que estou aqui, três dias que eu não vejo a você ou a Risi, e eu acho que desde que nossos pais morreram, fiquei tanto tempo longe de vocês.

Tudo aqui é horrível. Colocaram-me em um quarto com uma porta trancada, eu sinto que estou em uma cela, impossibilitada de sair. Não há janelas, e o único banheiro é tão terrivelmente sujo que me dá ânsia de vômito cada vez que eu entro lá. Há uma lâmpada, uma única lâmpada, amarelada que só acende no meio da noite, fazendo meus olhos doerem e lagrimejarem e eu não consigo dormir. As paredes, cobertas por um papel de parede ao antigo que não é possível distinguir a cor, tem um cheiro de mofo. O único móvel que tem aqui é uma cama de ferro enferrujado e colchão duro, minhas costas doem cada vez que uma mola me esperta, e mesmo que eu não possa ver eu sinto as feridas em minha carne.

Raphael, na noite passada eu tentei dormir no chão, eu nunca em minha vida tinha pensado sequer em dormir no chão, e eu mal havia me deitado quando sentir o inseto escalando meu braço, ele era preto e asqueroso, com uma carapaça brilhante que me pôs em pânico. Depois desistir de dormir no chão, subir na cama, tentei ignorar os machucados em minhas costas e as molas me esperanto, eu estava quase dormindo quando a luz se acendeu.

Você sabe o que é isso, Raphael? A privação do sono? Juro-lhe que não há nada pior que isso. Você sente sua mente entrando em colapso, como se insetos caminhassem dentro dela. Eu sinto que estou enlouquecendo, eu juro que estou enlouquecendo.

Toda vez que eu fecho os olhos, tento esquecer o lugar onde estou os ruídos a minha volta são como uma pancada em meu estomago. Você já notou que quando você fecha os olhos sua audição amplia? Às vezes eu ouço os ratos caminhando embaixo o assoalho, sua mastigação, é quase como se eles estivessem me comendo viva.

Eu ouço ruídos e gemidos em algum lugar além das finas paredes da minha cela, choro de mulheres, gritos de mulheres, gargalhadas de homens. Ontem havia uma mulher gritando, um par de vozes a acompanhava, e depois tudo ficou em silencio para que o choro de uma criança fosse ouvido. Era o choro de um bebê minguante e ainda assim estridente, o tipo de choro que Risi soltava quando mamãe a trouxe para casa depois da maternidade.

A criança mal teve seu tempo para chorar quando eu ouvir a mesma mulher de antes voltar a gritar, mas agora ela gritava como um animal desesperado, então a voz dela sumiu, tão subitamente quanto havia começado, e o choro da criança foi se distanciando ate desaparecer. Tem coisas que nos não podemos ouvir, mas o som ainda esta em nossas mentes, e eu ainda estou ouvindo aquele bebê chorar, aquela mulher gritar, e eu só quer que eles calem a boca, eu só quero que eles se calem, porque ouvi-los é o mesmo que ver alguém ser apunhalado na sua frene e você não puder fazer nada.

Eu não posso ver o dia daqui, mas eu posso senti-lo. Quando começa a esfriar eu sei que é à noite se aproximando. Quando está quente eu sei que é de dia. De noite eu tremo sobre o colchão, sem ter nem o pequeno privilegio de algo para me proteger do frio; de dia eu tenho que lidar com o calor abafado que me faz transpirar o suficiente para que depois de três dias nesse buraco eu esteja sentindo meu corpo malcheiroso e grudento.

Sinto uma terrível falta de casa, falta do conforto. Do meu banheiro e do meu quarto, das minhas roupas limpas e do riso de Risi correndo pela casa, da minha flauta e do meu violino, sinto falta de comer algo que meu estomago não rejeite... Aqui não há musica de verdade, Raphael, o único som são os gritos que rasgam as paredes dia e noite, é como uma sinfonia criada para agradar ao demônio.

Eu queria está em casa. E tudo que me vem à cabeça é a pergunta: o que estou fazendo aqui, Raphael?

Quando você me colocou naquela carruagem alugada e disse que tia rose estava doente eu lhe acreditei e fui para ajuda-la. Mas não era isso.

O que contou para Risi quando eu não voltei para casa? Como você vai contar para nossa irmãzinha que eu não vou voltar para casa? Não diga que eu a abandonei, por Deus, Raphael, não o faça. Não diga que eu fiz como nossos pais.

Desci daquela carruagem nos fundos da casa do conde. Imagine o meu assombro. Adolpho Mascaravi é exatamente o que dizem que ele é um deus da morte encarnado em um mortal, ele é belo, Raphael, mas o tipo de beleza que faz a qualquer um tremer de desconforto. Olhar para ele é como ouvir vidro e metal se chocando, ambos caindo no chão com um estardalhaço, você sente que esta despencando.

Ele estava me esperando no segundo em que a carruagem parou nos fundos da propriedade. Estendeu a mão para mim e me ajudou a sair, e a primeira coisa que fiz quando estava com os pés em terra firme foi me curvar para ele. Como não faria? Não é ele o homem mais poderoso de nosso reino depois do rei Gabriel?

Mas Adolpho riu da minha atitude, riu de mim. E eu fiquei paralisada. A risada dele era escura, Raphael, muito escura.

Então ele falou coisas que eu demoraria pouco tempo a entender.

- Minha querida Amália, creio que essa será a ultima vez que desejará se curvar para mim.

Ele me conduziu para dentro de sua morada, você já veio à casa do conde, Raphael? É como um castelo, grande e belo, algo de outro mundo. Ele me trouxe ate onde estou agora, e eu não entendi quando ele me trouxe a esse quarto horroroso, eu quis correr, fugir. Mas já era ara tarde demais.

Ele arrancou minhas roupas ate me deixar só de peças intimas, e quando eu o arranhei e tentei correr, ele me bateu. Ele me bateu uma e duas e três vezes, mesmo quando eu já não tinha força para reagir ele estava me batendo. Eu não sei em que momento aconteceu, mas eu desmaiei.

Desde que me pôs aqui ele vem me visitar. Ontem ele trouxe uma escova e a usou para escovar o meu cabelo, eu tremi e me encolhi de medo, e quando eu tentei me afasta dele, sua mão enrolou-se em volta dos meus fios e com um puxam ele me trouxe ate esta encostada novamente nele, a força do movimento trouxe lágrimas aos meus olhos, mas o que me fez chorar foram as palavras dele.

- Você é minha, Amália, você nunca vai fugir de mim.

O hálito dele em meu ouvido queimava a m minha pele e mesmo engasgando de medo eu conseguir falar, negar que eu não pertencia a ele, mas ele riu de mim, somente o fez como se eu tivesse dito algo terrivelmente engraçado.

- É claro que você é minha, eu paguei caro por você, Amália. Você me custou uma pequena fortuna que eu tive que pagar aquele seu maldito irmão. Mas você vale apena, pequena.

E enquanto as lagrimas rolavam em meu rosto, e me embrulhavam o estomago, o conde terminava de arrumar meu cabelo como se eu fosse uma boneca para ele. Eu queria gritar e bater nele.

Mas eu tinha entendido o que ele havia dito, e o pior era que eu acreditava nele.

Você lembra quando eu tinha oito anos? Aquela noite em que eu me arrastei para debaixo da cama com medo daquele grupo de Raças que haviam chegado ao nosso litoral? Eles estavam correndo pela rua, rindo e gritando uns com os outros. Eu estava chorando pondo nossos pais loucos enquanto eles tentavam me convencer a sair de debaixo da cama.

Você entrou no meu quarto e deitou no chão ate que pudesse me olhar nos olhos, trazia uma faca na mão, era uma daquelas pequenas de cortar manteiga, mas você a fez parecer grandiosa e perigosa, você a colocou em minha mão.

Você disse:

- Ninguém nunca lhe fara mal se você soube se defender.

O que eu nunca soube era que eu precisava me defender de você.

 De sua irmã, 

Amália.

                                                                                                            

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