Um assalto

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                                                                    25 de Novembro do vigésimo nono ano de Aurora

Raphael,

Você nunca foi muito organizado, sempre se esquecendo de pagar um empregado, de dar dinheiro para as compras, isso só me faz pensar que a casa vai virar de cabeça para baixo e você sequer perceberá.

Como essa Risi? Você sabe que as vezes ela chora no meio da noite e se ninguém for ficar com ela, ela não consegue voltar a dormir. E se ela não dorme no dia seguinte estará parecendo uma menina zumbi, uma pequena múmia ambulante ou algo tão terrível quanto, com um humor tão negro que é quase impossível de acreditar que uma criança possa o ter. Não a deixe sozinha.

Sabe, a responsabilidade de cuidar dela sempre recaiu sobre mim, e eu nunca me importei, nunca reclamei; você sempre esteve ocupado com outras coisas, cuidando a propriedade, das finanças, e eu nunca lhe questionei sobre nada, eu sempre confiei em você. Não estou pedindo para você fazer penteados no cabelo dela, ou brincar de boneca, sentado no chão da sala, eu sei que você nunca faria algo assim, mas você não pode deixa-la sozinha agora. Não quando ela só tem você.

Eu quase posso ouvir você resmungado, revirando os olhos pra mim, você sempre odiou ordens Raphael, apesar de adorar dá-las. Mas você é o irmão dela, não importa o quanto odeia que os outros lhe digam o que fazer. Ela é sua obrigação. As vezes não importa se você gosta de uma coisa, as vezes você é dela, as vezes ela é sua.

Ontem o conde veio me ver novamente. Dessa vez ele viu o caderno no qual eu escrevo. Por um segundo eu me desesperei, pensei que ele fosse toma-lo de mim. Eu não sei de quem era esse caderno, ele é antigo, muito antigo, e as poucas paginas escritas que existem nele estão em uma língua que eu não posso entender. Eu o achei embaixo do colchão, junto a ele havia uma caneta velha e quebrada, mas que por algum milagre ainda funciona.

O conde pegou o caderno de mim e o colocou no outro canto da cama, então ele ergueu a escova de cabelo ate minha cabeça e penteou meus cabelos. Ele nunca me chama de Amália quando faz isso, ele me chama de Isabel, e eu quero perguntar de onde ele conhece minha mãe, mas eu não tenho coragem.

Ontem ele ficou mais do que todos os outros dias. Ele penteou meu cabelo e fez uma trança, ele contou uma e outra história sobre algo relacionado ao rei Gabriel, e como o mesmo era tolo. Depois ele falou de minha mãe e como ela o tinha traído. Ele falava que eu o havia traído e que mesmo assim ele estava me dando uma nova chance para me redimir. Ele é louco, juro-lhe Raphael, o conde é um louco.

Ele disse que eu havia deixado ele e me casado com outro, que eu o havia enganado, e que ele era bondoso, que eu devia me sentir afortunada. Ele me beijou. 

Eu nunca pensei que ser beijada fosse algo como o que ele me fez sentir. A sensação de está sendo enjaulado, preso e sufocado, o coração acelerado como se você estivesse sendo enterrado vivo. Eu o queria longe de mim, eu precisava respirar e tirar as garras que me perfuravam o coração.

Eu o empurrei me levantei e sair da cama, mas ele me pegou pelo tornozelo e eu cai no chão, um grito escapou da minha garganta enquanto o ar saia dos meus pulmões e eu sentia a dor me assaltar.

O conde saiu do quarto, ele passou por cima de mim como se eu não fosse nada, e quer saber, na hora eu não me importei eu pensei que ele estava indo embora. Mas ele voltou, e ele não estava sozinho. Dois outros homens estavam com ele. Um deles me pegou do chão e me jogou na cama como se eu fosse uma boneca de pano, o conde encostou-se à parede e observou.

Ele estava olhando, olhando, olhando, quando ambos os homens se moveram em minha direção e me despiram ate que eu ficasse nua como no momento em que vim ao mundo, tocaram meu corpo, de um modo fez com que eu me sentisse suja. E eu gritei, doía tanto, Raphael, eu arranhei e mordi, doíam tanto, tanto, tanto, eu estava lutando e eles estavam me batendo e rindo. E em algum momento enquanto eu tentava fugir das mãos doentias, das investidas dolorosas, meu olhar encontrou com o dele.

Encostado naquela maldita parede velha, ele me queimava com sua monstruosidade, ele estava dizendo: isso é um castigo; ele estava dizendo: eu posso fazer o que quiser com você; ele estava dizendo: você não pode fugir de mim. E eu fechei os olhos, porque eu não podia fazer nada, eu não podia lutar contra eles.

Você é forte até certo ponto, você pode suportar até certo ponto, se você não sabe escolher contra o que lutar, você cai, você quebra, você se destrói antes que alguém consiga.

Eu me sinto suja, imunda, usada. Eles se foram, eles saíram e me deixaram para lamentar o que havia acontecido, e as lágrimas que eu não havia derramado antes, eu permitir cair quando eles se foram.

E sabe o que eu mais sinto? É que eu sei que eles poderiam ter feito pior, eles poderiam ter tirado minha pureza então já não me sobraria nada. Saber o que é pior, Raphael? É que você é tão culpado quanto eles.

Você roubou minha vida, você roubou minhas alegrias e me encheu de lágrimas, Raphael.

Ele não levou o caderno, sabe? Ainda está comigo. 

Hoje, quando ele veio me ver, ele trouxe uma maçã e ficou ao meu lado todo o tempo que demorou para que ele a devorasse, e ele comeu com extrema lentidão. Eu queria pedir um pedaço, eu quase implorei por um pedaço, porque eu estou faminta. Mas ao invés de me humilhar eu fechei os olhos e me escondi. Eu me escondi de tudo.

De sua irmã,

Amália.

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