06. Ensinando outra vez

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Depois do leve atrito com Feyd, Aýlla foi abandonada no corredor. Perambulou até encontrar um guarda, que a guiou para a ala dos quartos.

"Essa parte da fortaleza é só para visitantes?" perguntou ao chegar numa extremidade com uma enorme janela arredondada que ia do teto ao chão. Só três corredores levavam àquele espaço, e eles vinham de um deles.

"Não, milady" o guarda disse sem sair do lugar, estagnado na entrada. "Esta ala é apenas para a família Harkonnen" completou, fazendo a Ginaz arregalar os olhos.

"E o que eu estou fazendo aqui?"

"O barão ordenou que ficasse perto de Feyd-Rautha, para ser vigiada" explicou, e Aýlla sentiu suas bochechas esquentarem pela raiva. Respirou fundo, repetindo em sua mente que teria de jogar o jogo deles. "Seu quarto fica no corredor da direita".

"Suponho que o corredor da esquerda seja do meu carcereiro" ela murmurou, bufando. "Obrigada" disse, seguindo em frente. Apesar da luz cinzenta do lado de fora, algo nos vidros grossos da janela impedia que tudo ficasse sem cor. A paisagem não era bela. Um pátio de treinamento e pouso de naves de guerra estava três andares abaixo, e no horizonte uma cidade de prédios altos se extendia. Tudo preto e branco, sem vida e sem personalidade. Completamente diferente de Ginaz, o planeta de artistas e espadachins.

Virou no caminho à direita, reparando em cada detalhe esculpido na parede de mármore. Mais dez passos e alcançou a porta de três metros de altura, que se abriu automaticamente com a aproximação. O quarto, como já era de se esperar, mantinha os tons monocromáticos. Preto, branco, cinza e prateado. Era cansativo para os olhos, mas os móveis eram modernos e a cama gigante precia confortável. Uma passagem ao lado da janela tão grande quanto a da antecâmara levava à sala de banho, onde um armário aberto revelava roupas pretas femininas, colocadas ali para ela. Aýlla se perguntou quando aquela preparação foi feita, se esse era o plano desde o início, ou se tudo aquilo era para outra pessoa. Engolindo em seco, voltou para o espaço principal. Alisou o lençol negro, brilhoso, e seus ombros tensos relaxaram.

Nem se lembrava da última vez que havia dormido num quarto de verdade, já que havia passado os últimos anos perambulando pelas galáxias. Ignorando o estômago que clamava por comida, ela se deitou. Talvez fosse pela luta com Feyd-Rautha dias antes, ou o fato de ter sido sequestrada e chicoteada num planeta mercador de escravos, mas o cansaço a dominou por completo. Dormiu pesadamente, pensando em como fazia muito tempo desde a última vez que havia trocado mais que poucas palavras com alguém. Se pegou percebendo que sua boca passou a estar mais tempo fechada em silêncio que qualquer outra coisa, e como isso era diferente de sua antiga vida. As aleatoriedades dos pensamentos a levaram a um sono profundo, o clima fresco do quarto e o cheiro de limpeza dos lençois a ninaram.

Uma noite inteira e boa parte da manhã se passou como num piscar, e não fosse pelas batidas insistentes na porta, Aýlla sequer teria acordado. Esticou o corpo sem pressa, aguçando os sentidos e se lembrando de onde estava. As batidas na porta continuaram. "Foda-se isso" a voz grave que passara a ser familiar soou. Logo depois, a porta se abriu, e o Harkonnen mais novo invadiu o quarto. Ele olhou em volta, e a Ginaz se perguntou o que ele esperava encontrar enquanto ela se sentava na cama, lenta. "Ótimo, você não morreu", seu tom longe de ser uma celebração.

"Bom dia" ela disse se espreguiçando, forçando a expressão sarcástica. Sabia que seu cabelo estava desgrenhado, que suas pernas estavam à mostra por ter tirado as calças no meio da noite, e que seu hálito provavelmente estava medonho. Mas ela não se importava com porra nenhuma.

"Os soldados não gostam de esperar" ele disse, o nojo percorrendo seu rosto enquanto observava a jovem. Ela levantou uma sobrancelha. "Levante-se, Mestre de Espadas, ou prefere que eu arraste você para fora dessa cama?" ele completou já avançando para o colchão baixo, tentando alcançar o pé de Aýlla, que desviou.

"Mantenha suas mãos para você" ela rosnou, arrancando um sorriso bonito de Feyd-Rautha. Atravessou o quarto preguiçosamente, em direção ao banheiro. Nunca, em todos os seus vinte anos de vida, se imaginou numa situação remotamente parecida com aquela. "Para onde vai me levar, de qualquer forma?" perguntou, escolhendo uma vestimenta nos cabides.

"Você vai treinar os guardas reais, lembra? Se manter útil, para se manter viva" ele bufou, impaciente, apoiando as costas na janela arredondada.

"Você tem algo para comer, pelo menos? Treinar em jejum seria um desperdício do meu talento" a Ginaz perguntou enquanto puxava o tecido de sua blusa para cima da cabeça. Harkonnen, instintivamente, olhou em direção ao banheiro no exato momento em que a jovem terminava de se despir, mantendo apenas as roupas íntimas. Ele via tudo pelo reflexo no espelho. Ela tinha muito mais músculos do que ele havia imaginado. As costas desenhadas, os braços firmes e as pernas torneadas, tudo perfeitamente distribuído no corpo esguio. Xingando-se mentalmente, desviou o olhar.

"Você não jantou?" ele perguntou, tentando se concentrar em qualquer outra coisa além da visão da garota seminua.

"Eu não como há mais de dois dias" ela revelou, e ele soltou um riso de escárnio.

"Eu não sou uma babá para vir acordá-la, para lembrá-la de comer ou para levá-la na enfermaria. Se você despreza tanto a própria vida, por que se dar o trabalho?"

"É uma boa pergunta" Aýlla respondeu voltando para o quarto, já trajando um conjunto de calça e blusa de couro, parecido com o que o próprio Feyd usava. "Então, onde é o café da manhã?" esfregou uma mão na outra, empolgada.

Não existia "café da manhã" no planeta estranho, a Ginaz descobriu mais tarde. O desjejum era normalmente composto por cereais, grãos ou um mingau cinzento com cheiro estranho. Nada de frutas, pães, bolos ou doces. Forçou uma boa quantia de ração seca para aguentar até o almoço que, segundo Feyd-Rautha, era a refeição mais completa. Assim que ela terminou de comer, Harkonnen sumiu, deixando-a com o mesmo guarda do dia anterior.

Ele a levou para o pátio de treinamento que havia visto de sua janela, onde um pequeno batalhão de jovens guardas esperavam. Todos brancos demais na luz do sol, enfileirados e aguardando ordens. Por um segundo, Aýlla se sentiu em casa, na Escola em um dia normal de aula. Então vestiu a máscara de professora, e começou a trabalhar.

Essa passou a ser a rotina: acordar, treinar, dormir. A cada poucos dias se reportava ao barão, caindo em suas graças com uma facilidade até ridícula. Não viu Feyd-Rautha nenhuma outra vez, mas, por alguma razão que fugia completamente de sua compreensão, se pegava olhando em direção ao quarto silencioso em frente ao seu. Os dias se transformaram em semanas e, antes que pudesse perceber, dois meses inteiros haviam se passado. Aýlla se forçou a funcionar como uma máquina, reprimindo suas emoções e evitando pensar a longo prazo. Um dia de cada vez.

Os guardas haviam avançado muito em sua habilidade corpo a corpo, com e sem espadas, e o barão estava extremamente satisfeito. Bem quando Aýlla havia esquecido de sua existência, Feyd apareceu no meio do treinamento. Ele circulou por alguns minutos, analisando, antes de finalmente se aproximar. Os guardas haviam se dividido em duplas, e duelavam sem armas e sem golpes fatais enquanto a Mestre avaliava. Ela estava tão concentrada que só sentiu a presença avassaladora de Harkonnen quando ele se colocou ao seu lado.

"Quero que me ensine" ele soltou, sem formalidades ou cerimônias. Aýlla engasgou com a própria saliva.

"O quê?" estava incrédula, perplexa, e incerta de que ouvira corretamente.

"Quero que me ensine sua técnica" esclareceu, irreverente, sem tirar os olhos dos guardas que se atracavam.

"Chegue no horário amanhã" ela respondeu, cruzando os braços, mas Feyd-Rautha apenas maneou com a cabeça e partiu. Era o homem mais instável e problemático de todo o Universo e, mesmo assim, ela sorriu de canto enquanto o observava sumir.

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