02. Segredos e mentiras

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Apesar de muito jovem, Aylla lecionava luta corpo a corpo na Escola. Há quase três anos sua família inteira havia sido assassinada covardemente enquanto dormia, porque até o exército do Império sabia que não se mexia com os Mestres de Ginaz. A mera lembrança fazia a herdeira enrijecer e bater com ainda mais força no aluno muitos anos mais velho. Se interrompeu apenas quando um dente do homem caiu, sujando o chão espelhado.

Saiu do ringue para beber água, enquanto seu assistente limpava o sangue. A porta se abriu num estrondo, assustando a jovem. Duncan Idaho entrava com os braços abertos, sorrindo lindamente. Os Mestres espalhados pelo centro de treinamento praticamente fizeram fila para cumprimentá-lo. Faziam exatos dez anos que o Mestre de Espadas de Atreides havia se graduado na academia, Aylla tinha apenas oito anos na época e vivia na sombra de sua mãe.

O homem musculoso caminhou despretenciosamente pelo espaço, observando conforme os cadetes mais jovens treinavam entre si. Seus olhos quase faiscaram quando viu a mulher que o encarava do outro lado. Aylla aparentava ser mais velha do que era de fato, e se aproveitava disso com muita frequência. Ela entrou no ringue outra vez, um convite silencioso pairando no ar conforme Duncan se aproximava.

"É a primeira vez que vejo uma aluna em Ginaz, na minha época só aceitavam homens" ele disse, tirando a própria camisa. Aylla quase deixou passar a fala arrogante com a visão divina dos abdômens do homem.

"Eu não sou aluna" ela respondeu, séria.

Ele sorriu. "Então isso vai ser mais divertido ainda" brincou.

Só quatro minutos depois, Idaho estava estapeando o tatame, desesperado por ar. Os outros professores assistiam, rindo, acompanhados de alunos insolentes.

"Foi um exercício agradável" Aylla disse com o joelho ainda pressionando o pescoço do mais velho. Quando o soltou, ele tossiu violentamente, encarando o professor mais idoso com raiva nos olhos.

"Você podia ter me avisado" ele resmungou ao velho conforme se levantava. A garota bebia água do lado de fora outra vez, um sorriso maroto brotando nos lábios. Depois de uma chuva de piadas insultando Duncan, ele se aproximou da herdeira Ginaz. "Quem é você?" perguntou, analisando os traços familiares enquanto engolia o corpo bem definido com os olhos.

"Uau" ela disse, levantando as sobrancelhas. "Suponho que não seja mais 'uma criança ranhenta no seu pé'" ela repetiu a fala dele, de tanto tempo atrás. Duncan arregalou os olhos, dando dois passos para trás e tapando o rosto com as mãos.

"Não!" ele exclamou. "Não pode ser, porra". Ela gargalhou. "Pirralha, você sabe as coisas que eu pensei em fazer com você?"

"Eu não fiz nada" disse, dando de ombros, conforme pegava sua túnica preta e caminhava para fora com o guerreiro em seu encalço. "Além disso, você é só dez anos mais velho, Idaho, podemos brincar" ela sussurrou, fazendo-o olhar em volta, preocupado que alguém pudesse ouví-los.

"Não fale essas coisas, Milady, vão pensar errado a seu respeito" Aylla revirou os olhos, sentindo a pedra fria nos pés descalços conforme atravessava o pátio.

"Acho que você esqueceu onde está, cadete" ela disse, fria. "Melhor se lembrar de como as coisas funcionam por aqui" completou antes de entrar na sala que vinha tentando invadir há meses, deixando Duncan para trás.

Aylla mal havia fechado a porta quando os sussurros do passado começaram a se entrelaçar com os ecos do presente. A sala, repleta de troféus e armas de sua família, parecia um santuário para os Mestres de Ginaz que vieram antes dela. Mas, entre as sombras e as lembranças, um segredo se escondia, e ela estava ali para revelá-lo.

Mesmo que a história de Ginaz não fosse a mais bonita, era certo que todo trabalho era bem recompensado. Ninguém era escravizado, e ninguém permanecia nos show contra a própria vontade. Essa era uma das poucas regras. Desde que Feyd-Rautha havia acusado seu pai do mais trágico dos crimes, Aylla relutara antes de ir atrás de respostas. Depois de algumas semanas observando o pai com mais atenção, percebeu que algo não estava certo. Mais cedo naquele dia, finalmente, garantiu que os guardas que normalmente vigiavam a entrada estivessem ocupados com outra coisa.

Era tarde da noite quando encontrou os documentos. Eles estavam escondidos em um compartimento secreto sob o piso de pedra. As palavras "tráfico de escravos" saltaram das páginas, cortando-a como uma lâmina afiada. Seu coração batia com força contra o peito enquanto lia os detalhes sórdidos dos negócios de seu pai. Duque Lucius Ginaz, o homem que ela venerava, o líder que todos haviam passado a respeitar, estava envolvido em uma rede de corrupção e miséria.

Aylla sentiu o peso do mundo desabar sobre seus ombros. A honra de sua família, a integridade de sua linhagem, tudo foi manchado pelo sangue e suor de inocentes. Ela não poderia ficar parada, não poderia permitir que o legado fosse esse. Com lágrimas de fúria e determinação, ela marchou para a fortaleza. Não se despediu de ninguém conforme empacotava seus pertences e se preparava para partir. Não conseguiria ver o pai sem arrancar seu coração fora. O homem corajoso que conhecera havia morrido junto de sua mãe. Estava caminhando a passos duros em direção ao hangar em que sua nave estaria, quando Duncan Idaho apareceu outra vez.

"Aonde vai?" ele perguntou, confuso, já a seguindo.

"Sair" ela respondeu, sua voz firme apesar do turbilhão de emoções. "Preciso resolver alguns problemas".

"Seu pai te alertou, então? Vim até aqui exatamente para avisar que a tensão entre os Atreides e o Imperador está cada vez mais preocupante" ele falava rápido demais.

"Isso é problema dos Atreides" ela disse, concentrada, abrindo a rampa de sua nave. "Nossa aliança acabou quando Atreides virou as costas para nós quando mais precisamos" ela cuspiu as palavras, deixando Idaho perplexo. "Espero que meu pai faça o mesmo, e fique longe das confusões de vocês" finalizou. Não esperou por uma resposta antes de subir no veículo.

Primeiro, iria atrás de todas as prisões espaciais que estampavam o nome Ginaz, onde os Fremen cativos estavam sendo mantidos, depois daria um jeito de mandá-los a um lugar seguro. E então, talvez, desapareceria e começaria uma nova vida bem longe dali.

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