Legado Fúnebre

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Eu e um grupo de amigos sempre costumávamos passar um tempo no cemitério depois de uma noite repleta de estudos na faculdade. Alice, Molly, Noah e eu, Sam. Algumas pessoas podem achar esse tipo de coisa estranha, mas nós apenas gostávamos muito das lápides bem elaboradas, das árvores enormes de galhos grotescos e principal e literalmente, o silêncio sepulcral. Nesses passeios falávamos sobre música, literatura, cinema, teatro e coisas do nosso cotidiano. Terror, principalmente terror. O terror pode se aplicar a qualquer um dos assuntos citados e é ainda melhor quando tratamos de algo que realmente aconteceu. Não o terror em sua essência própria, mas acontecimentos estranhos, que podem acontecer em qualquer lugar a qualquer hora, e mudar sua vida ou morte para sempre. É assim que começa a minha história.

Era uma noite de quinta-feira comum ao não ser pelas estrelas que brilhavam muito, mas não mais que os olhos de Alice. Fazíamos três anos de namoro naquela mesma noite. Todos nós estávamos quase chegando ao cemitério, quando na rua em frente aos muros pudemos avistar uma velha cigana vestida em trajes um tanto velhos, desgastados e um tanto desproporcionais ao tamanho do seu corpo. Ela chegou perto de Alice, agarrou seus braços e começou a fitar seus olhos e recitar palavras em um idioma desconhecido num ciclo interminável. A cigana colocou algo numa das mãos da Alice. Quando eu percebi que aquilo estava assustando Alice - o que me surpreendeu, porque ela nunca parecia se assustar com nada nem ninguém -, e para falar a verdade a mim também, puxei os braços de Alice e empurrei a cigana com tanto força que ela caiu sentada no pavimento cinza da calçada. Noah e Molly assistiram àquilo perplexos. Saímos correndo até que chegamos ao portão principal do cemitério, que ficava um pouco longe de onde a cigana havia nos abordado. Alice parecia em choque, então decidimos cancelar o passeio. Então me despedi de Molly e Noah e nós dois fomos para a casa de Alice que ficava a somente alguns quarteirões dali.

Chegando lá, Alice sentou no sofá e começou a roer as unhas, balançando de nervosismo. Ela suava, suava muito, parecia estar com uma febre bastante forte. Levei-a para a cama e pude notar que ela estava tentando falar algo, então aproximei meu ouvido de seus lábios e pude ouvir a seguinte frase dita com tamanha dificuldade: "A Rosa Negra está aqui, a Rosa Negra sempre estará em você." Ela fechou os olhos bruscamente, enquanto o suor ainda se esvaía de seus poros em quantidade ainda maior. Me senti assustado com o que Alice falou, mas ela devia estar só delirando, logo não precisaria me preocupar. Sua mão direita estava rigidamente fechada, com toda a força tentei abri-la, mas não funcionava. Eu passei a noite toda acordado olhando pela Alice. Bom, quase toda, porque depois de algum tempo não consegui manter os olhos abertos.

Acordei assustado, eu não deveria ter dormido, eu deveria ter passado a noite olhando pela Alice, mas mais uma vez eu falhei. Ela não estava na cama, então fui procurá-la. Procurei por toda a casa, porém não encontrei nenhum sinal dela. Procurei por ela nas ruas nas proximidades da casa, mas nada. Liguei para a Molly e para o Noah, mas nenhum dos dois sabia onde ela estava. A última ideia que me ocorreu foi procurar pela Alice no cemitério. Por que não? A verdade é que não me restavam muitas opções.

Já no cemitério, após espreitar por vários túmulos, eu encontrei Alice. Ela estava parada em frente a uma sepultura de mármore com um anjo de pedra apoiado em cima. O estranho é que eu jurava nunca ter visto aquela sepultura, mesmo conhecendo o cemitério como a palma da minha mão. Eu chamei por seu nome, mas ela não respondeu. Chegando mais perto, disse:

- Você está bem?
- Melhor do que nunca - disse, ainda olhando para a sepultura.
- É... e sobre ontem? O que houve?? - disse eu, sem esconder a preocupação.
- Nada. Não foi nada... Esqueça.

Alice estava fria e distante de mim. Muito diferente do normal, ela sempre sorria, era calorosa e se preocupava com todo mundo.

- Sobre aquela cigana que você agrediu ontem... Por que fez aquilo? - ela se virou
- Bem... Eu pensei que ela estivesse te machucando e...
- Por que você fez aquilo??!! - disse ela, sacudindo meu braços com força e depois caindo no chão, de joelhos.

Eu podia ver lágrimas escorrendo de seu rosto, enquanto ela se mantinha com a cabeça baixa. Eu me abaixei para falar com ela, mas a essa altura ela já estava se pondo de pé. Alice abriu a mão - aquela que estava fechada - e eu pude ver uma flor, uma rosa preta. A mão de Alice estava sangrando por conta dos espinhos.

- Aquela velha que você agrediu na noite passada, ela me deu isso e já que você é o culpado da minha desgraça, gostaria de compartilhá-la com você.

Alice colocou a rosa na minha mão direita. Eu não entendia nada. Eu era culpado de quê? Aquela mulher não parecia mais ser a Alice, eu comecei a ficar assustado.

- Alice, por favor, vamos pra casa!
- Minha casa agora é aqui - disse, apontando para a sepultura de mármore - e logo será a sua também - com um sorriso angelical.
- Você pode me explicar por que está agindo dessa forma?
- É simples - disse, ainda com o sorriso no rosto -, aquela senhora me deu uma rosa, uma parecida com que está aí na sua mão. A partir de um certo tempo ela vai passar a sugar toda a sua vitalidade. E se tentar destruí-la, você morre.
- Alice, eu não estou afim de brincar, vamos pra casa!
- Você é burro ou o quê? Eu já disse que eu moro aqui agora. E logo você virá me fazer companhia. Não adianta lutar contra isso.

Morar num cemitério de longe não me parecia uma má ideia. Mas eu estava assustado. O que estava acontecendo com a Alice?

- Se você quer ficar aqui sozinha por um tempo eu entendo - disse calmamente -, mas você está me assustando com todo esse papo de rosa.
- Até logo, querido - disse ela sorrindo, virando-se e adentrando vagamente os fundos do cemitério, até que ela se perdesse por trás das árvores e eu não pudesse mais vê-la.

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Anos e anos se passaram e eu nunca mais vi Alice. Ela não estava em casa e nem atendia ao telefone. Ninguém sabia onde ela poderia estar, além de que ela não tinha família. Até aqueles tempos eu me recusava a acreditar no que ela havia me dito sobre tal rosa negra. Nunca mais fui ao cemitério depois do último dia que vi Alice. Molly e Noah agora estavam distantes. Eu me sentia sozinho. Sem meus amigos, sem minha namorada... Dias solitários...

Numa noite após uma chuva tempestuosa bebi muito e resolvi ir ao cemitério. A cigana estava ali perto do muro como da primeira vez. É claro que eu resolvi ir tirar satisfação com ela. Afinal, por que Alice tinha dito que eu era culpado da desgraça dela? Quando me aproximei da velha ela começou a recitar algo mais ou menos assim:

"Pobre criança
Filho da maleficência
Irmão da ignorância
Perdeu sua amada pela Rosa Negra
Apenas por sua arrogância"

Eu apenas ignorei, joguei uma garrafa de qualquer coisa na cigana e adentrei o cemitério, se eu quisesse saber alguma coisa teria que procurar por mim mesmo. É impressionante como o cemitério é soturno e solitário sem as pessoas que costumavam me acompanhar. Mas para mim nada disso importava mais, eu queria me deitar e nunca mais acordar.

Adentrando o cemitério mais a fundo, encontrei a sepultura de mármore. E... Alice? Alice? Sim, Alice. Ela estava com um vestido branco - ela raramente se vestia com roupas claras -, novamente olhando para a sepultura.

- Alice, é você, Alice?

Ela se virou levemente e num movimento só.

- Querido! Você finalmente veio! Há quanto tempo venho esperando por você!
- O que está acontecendo aqui?
- Eu não lhe disse que você acabaria voltando?! É a promessa se cumprindo!
- Isso não faz o menor sentido! E vai me dizer que é um fantasma?!
- Olha! A sua está lá! - disse, apontando para uma sepultura de granito.

Quando me aproximei pude ver meu nome gravado na lápide: Samuel Lewis Fretcher.

- Que droga é essa?! - disse esbravejando.
- A Rosa Negra - disse.

Aquela voz... Aquela voz não era a de Alice. Quando me virei não vi Alice, ao invés disso, vi a cigana, gargalhando perturbadamente.

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