Eu rabiscava nas últimas páginas do meu mais novo caderno de maneira quase agressiva. O grafite se desfazendo com a força que eu colocava em cada tracejado, que apesar de parecer desajeitado, era preciso e eficiente. Aquele mesmo rosto se formando em cada nova página desde a noite de sexta-feira. Aquela lembrança inesperada havia conseguido me abalar ainda mais do que a presença de Rebecca. E isso me apavorava.
Me assustava pensar que eu havia tido um flashback. Uma lembrança esquecida que apareceu de maneira espontânea engatilhada por alguma coisa. Eu era verdadeira o suficiente comigo mesma para saber que não era exatamente alguma coisa, e sim alguém, ou o meu desejo por esse alguém que havia trazido aquilo à tona. Mas o que seria "aquilo"? Que lembrança seria essa que não fazia parte de nenhuma outra das centenas de vidas que eu conseguia catalogar com segurança do meu passado?
E claro que poderia ser simplesmente uma cena sem importância das muitas vidas que eu levava comigo, e seria normal eu me esquecer dela e ter relembrado assim de supetão, mas algo em mim dizia que esse não era o caso. Os sentimentos que surgiram junto com aquelas lembranças deixavam flagrante a importância dela e eu não costumava esquecer sentimentos arrebatadores como aquele. Sentimentos arrebatadores como ela.
Larguei com raiva o lápis sobre o caderno e bufei em frustração, vendo aquele rosto desconhecido me encarando mais uma vez da página aberta. Eu tentava reconhecê-lo, entender onde ele se encaixava na minha história, mas era impossível. Com a mesma certeza que eu sabia que ele era importante, eu sabia que eu não me recordava dele até então. Mas aceitar isso, era aceitar que eu sabia ainda menos coisas do que eu esperava. E isso estava me abalando mais do que eu achei possível.
"Eu pensei em não comentar, mas está se tornando cada dia mais impossível," uma voz feminina me retirou dos meus pensamentos e eu não precisava levantar meu olhar para saber que era Rebecca. "Você está bem, P'Freen?"
Sua voz tinha um tom adocicado e trazia consigo uma óbvia preocupação que me fez fechar os olhos com a intensidade da reação do meu corpo. Eu ainda não conseguia colocar em palavras os efeitos de Rebecca sobre mim, mas era inegável que apesar de me sentir confusa, havia conforto em sua presença desconcertante. Era como se ela fosse a tormenta, mas também o primeiro raio de sol.
Era muito confuso para eu lidar naquele momento.
"Estou," falei de maneira mais ríspida do que eu pretendia, enquanto me apressava para fechar o caderno que expunha o que estava fazendo até então. Tudo o que eu menos queria era que ela começasse a perguntar pelo rosto desenhado na página.
Não que ela fosse reconhecê-lo, porque apesar da marcante característica das covinhas no belo resto da minha memória, a mulher e Becky não tinham mais nada em comum fisicamente. E mesmo que eu tivesse tentado racionalizar isso de várias formas, eu sabia que o fato de elas não se parecerem em quase nada, não diminuía a chance de eles terem muita coisa em comum.
"Você tem certeza?" a voz parecia ainda mais perto e ainda mais preocupada, o que me fez respirar fundo, sentindo um sentimento quente se espalhar do meu peito para as extremidades do meu corpo.
Mesmo que eu quisesse descontar as minhas frustrações na menina atrás de mim, eu não conseguiria. Era como se ela tivesse todo o poder sobre mim, mas ainda não tivesse aprendido a usá-lo ainda. E eu temia o dia que ela conseguisse.
"Sim, Nong Rebecca," falei em um tom mais calmo, me virando lentamente na cadeira para encontrar os olhos gentis da mulher mais nova sobre mim. "Me desculpe se lhe preocupei com o meu comportamento nesses últimos dias, eu confesso que ando um pouco inquieta com algumas coisas," me vi me justificando numa tentativa de apaziguar a preocupação naqueles olhos castanhos. Eu não devia nada a ela, mas era mais forte que eu.
"O seu comportamento é sempre inusitado, P"Freen," Becky respondeu de uma maneira divertida e eu pude observar quando seus ombros relaxaram e um sorriso solto adornou a ponta dos seus lábios.
Eu revirei os meus olhos para ela e tive que forçar para que um sorriso não alcançasse os meus próprios lábios. Ela havia desarmado minha tensão com apenas uma brincadeira boba e um sorriso e isso poderia não ser evitado, mas poderia ser escondido.
"E o seu inadequado para com a sua responsável, Nong Rebecca," falei tentando manter a minha voz firme, mas ficou claro pela sua reação que eu havia falhado miseravelmente em esconder os meus reais sentimentos.
"Quando você vai começar a finalmente me chamar de Becky?" ela perguntou, escorando seu corpo sobre a minha mesa, e ficando bem próxima de mim, tanto que para encará-la no rosto, eu tinha que erguer a minha cabeça.
A sua proximidade trouxe junto o seu cheiro adocicado e cítrico ao mesmo tempo, me fazendo sentir um pouco zonza.
"Becky parece um pouco mais íntimo do que devemos," respondo sem pensar muito bem.
"Do que devemos ou do que você quer?" Becky falou, me fazendo olhá-la abruptamente para tentar entender o que ela queria dizer com tais palavras. O sorriso jovial em seu rosto e o brilho misterioso em seu olhar me diziam que aquela conversa estava indo para caminhos perigosos.
"Ambos estão corretos," falei voltando a enrijecer a minha postura e me virar para a minha mesa, arrumando algumas coisas, claramente em uma atitude de quem finalizava aquele pequeno diálogo.
"Às vezes me pergunto se você percebe que suas paredes são de vidro, Phi Sarocha?" Becky falou em um tom de voz que eu não reconheci, antes de se afastar da mesa e, consequentemente de mim, para voltar até a sua posição do outro lado da sala.
Eu segui seus movimentos com os meus olhos, como se fosse algo que eu fosse obrigada a fazer e senti toda a confusão que havia se dissipado com sua presença, voltar a todo vapor. O que ela queria dizer com aquilo? E por que isso me importava tanto?
Me virei de volta a minha estação de trabalho, mais uma vez frustrada com as muitas perguntavas que rodavam a minha cabeça. Meus olhos caíram sobre o caderno fechado e eu o abri, folheando cada novo desenho que eu havia preenchido nas páginas desde o flashback. E tudo bem, os rostos continuavam completamente diferentes tirando as covinhas, mas era inegável a segunda coisa que ligava a mulher do desenho com a mulher atrás de mim. Ambas me forçavam a pensar em algo a mais, algo além de tudo o que eu acreditava.
Notas da autora:
Boa noite, bebês. Como estamos?
Nem era a minha intenção atualizar hoje, mas eu comecei a escrever e quando eu vi esse capítulo saiu.
Eu quero escrever até o momento que elas cheguem em algo que eu possa explorar a relação delas mais livremente e acho que isso está acontecendo.
Espero que gostem e até o próximo!
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Destiny Seeker
FanficNão importa quantas vezes você tenha seu início, meio e fim, tudo isso se repete, de uma forma ou de outra. Eu já vivi muitas vidas, em muitos corpos, em muitas nações, em diferentes línguas. Já tive vários tipos de famílias, empregos e relações. Já...