SEG 06/02 - 22H14MIN

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Meu pai dirigiu o mais rápido que pôde para não passarmos do limite máximo de tolerância de atrasos de sua esposa. Não seria agradável para ninguém a ouvir exortar-nos. Chegamos com um minuto de sobra e isso calou Camila Colombo.

Corro meus olhos pela sala a procura de onde me refugiar enquanto andamos até os pais enlutados. Glória está sentada nos degraus do altar, de cabeça baixa, indiferente a tudo que acontece. Olha para o chão como se pudesse mergulhar em busca da filha e trazê-la de volta do mundo dos mortos. Levi Esposito, seu marido, está no canto da igreja, chorando copiosamente. Seu rosto está uma bagunça; normalmente o inchaço do álcool nunca o deixa, mas, agora, este inchaço está acompanhado pelo choro que o faz parecer que está prestes a explodir. Não consigo encará-lo por muito tempo. Volto a olhar envolta.

Poucas pessoas chegaram. Somos em dezoito, ao todo.

Encontro cabelos loiros, ondulados e longos que reconheço, mesmo de costas. Lili está sentada na primeira fileira de bancos e vira para trás quando sente a nossa presença. Ela me sorri com afago, sem mostrar dentes. Seus olhos quase não podem ser vistos em meio às lágrimas. Quero abraçá-la, contudo, antes, dirijo-me aos pais. Glória mal reage, parece estar dopada de calmantes. Logo passamos dela ao tio Levi. Ele abraça meu pai, primeiro, urrando que era tudo sua culpa. Não entendemos do que aquilo se tratava — ninguém havia dado tantos detalhes. A causa específica da morte ainda era desconhecida pela minha família.

Sento ao lado de Lili, que encara a estátua da Virgem.

— Foram vinte e duas facadas — ela conta, sem me encarar.

Caralho! — solto, inevitavelmente. — Quem...

— Ninguém sabe — ela me interrompe. — Acharam o corpo lá pelas uma da manhã, depois que a tia Glória trouxe o tio de volta do bar.

— Por isso ele está dizendo que é culpa dele?

— Ele estava desmaiado de bêbado no chão de um boteco quando a filha morreu — narra com rispidez. — Está desde que chegou dizendo que devia ter ido embora mais cedo, não deixado a filha sozinha em casa. — Lili jamais admitira, mas sei, pelo tom de voz que ela emprega, que concorda com isso.

Ouvimos a porta pesada da igreja ser empurrada e olhamos, os dois, para ver quem chega. Era Oscar com sua mãe — sem sinal do pai, que ainda não conhecemos.

Ele está com um terno respeitável, ela se parece com a viúva jovem e rica de um velho. Não consigo deixar de notar como ela é bela. Não há melhor palavra. Usa um vestido justo na altura dos joelhos, decote quadrado, sem mangas. Parecia caro, assim como a singela joia sobre seu colo. Apenas uma fina corrente com um pingente de pedra. Não consigo ver de que pedra se trata, mas seu brilho delicado não é falsificado. Isso sei.

Oscar me encontra e me cumprimenta apenas com o olhar. Como da primeira vez, me impressiona o quanto é parecido com a mãe.

Eu e Lili vemos os dois se dirigirem a Glória e Levi para prestar suas condolências. Quando eles terminam, sou tomado pela certeza de que preciso me levantar dali e ir para o pátio da igreja, apenas para que ele me siga.

Quando estou no meio do corredor, ocorre-me que estou louco. Por que ele entenderia um sinal tão escondido de um quase desconhecido? Porém, quando já estou sentindo o ar quente da noite, ele sai pelas enormes portas da igreja para me encontrar.

Não dizemos nada a princípio. Apenas permanecemos em pé, a pouco mais de um metro de distância. Sei que ele está em silêncio em respeito ao meu luto.

Quando já respirei o suficiente, abro a boca para dizer:

— Sabia que ela levou vinte e duas facadas?

Vejo-o franzir o cenho e conter uma expressão de nojo.

Não sei o porquê lhe disse justo isso. Talvez eu apenas não tenha processado a informação e precise que alguém me ajuda a assimilá-la propriamente.

— Quando a gente ainda estava escolhendo a casa, minha mãe me disse que era uma cidade segura — ele conta, com escárnio.

— Era — sou obrigado a rir. — Hoje nós trancamos as portas e as janelas antes de sair de casa. Foi a primeira vez que vi meus pais fazerem isso.

Oscar assente, compreensivo.

— Eu não sabia se deveria vir. Quer dizer, eu nem conhecia a Julieta, não lembro o apelido, direito. Mas eu moro aqui do lado e minha mãe insistiu que seria "indelicado" — faz aspas com as mãos — não vir.

Dessa vez, sou eu a anuir em entendimento.

— Fico feliz que tenha vindo. Está todo mundo tão... pesado. É bom conversar com alguém que não tem o dever de estar triste — penso sobre o que eu disse e logo me arrependo. — Nossa, isso foi péssimo da minha parte.

— Não, não foi. Você precisa de alguma distração. Isso não significa que não esteja mal pelo que aconteceu.

— Sinto que sou um péssimo amigo. Só consegui chorar uma vez, assim que soube. Mas sabe o que eu fiz depois? Fui dormir — rio. — Não sei nem por quê.

— Por que estava cansado? — ele pergunta, como se fosse minha obrigação saber a resposta.

— Sim — reflito. — E eu estou com fome. É horrível dizer isso em voz alta, mas durante todo o trajeto para cá eu só pensava em comer um hambúrguer.

Meu xará gargalha, baixo, para que ninguém ouça.

— Isso é normal, Oscar, pelo amor de Deus!

— Uma das minhas melhores amigas morreu, não posso pensar em hambúrguer.

— Mas pensou.

Rendo-me.

— O pior é que os biscoitos de nata lá dentro não vão matar a minha fome.

— Já se foi o tempo em que velórios tinham comida boa — ele debocha e sou obrigado a concordar.

— Não comi nada o dia inteiro... — passo a mão na barriga.

— Não acho que sua amiga ia querer que você morresse de fome logo depois dela.

— Não... — rio mais uma vez, percebendo o quanto ri nos últimos minutos. — Ela iria me matar por roubar o palco dela.

— Me desculpa se vai parecer cruel — Oscar diz, com um tom sério, pisando em ovos —, mas ela é quem morreu. Você continua vivo.

Entendo o que ele quer dizer. Julieta Esposito não iria querer que eu parasse de rir. Não há crueldade ou desrespeito em viver a vida que ela iria querer para mim.

— É possível passar pelas cinco fases do luto em um dia só? — pergunto.

— Não. Você ainda vai chorar muito e vai xingar Deus, vai querer ter morrido no lugar dela e talvez tente se jogar em cima do caixão quando ele estiver sendo enterrado. Mas também vai ter dias tranquilos e vai continuar comendo, dormindo, cagando — sorrio com o "cagando" — e batendo punheta — rio ainda mais —, porque o luto nunca é linear. E tá tudo bem.

Olho fixamente para o vitral acima das portas da igreja. Não sei identificar de que santo se trata mas rezo para que ele me ajude. Demoro alguns segundos encarando o desenho. Só sou tirado do torpor quando pisco com força para que as lágrimas voltem para meus olhos. Não quero me debulhar em lágrimas na frente de Oscar.

— E o que acha que eu devo fazer agora? — pergunto a ele, ao invés disso.

— Acho que você tem que ir lá em casa pra gente fazer hambúrgueres.

Sorrio, grato. — Vamos comer hambúrguer.







Antes que chovaOnde histórias criam vida. Descubra agora