— Eu odeio como você sempre deixa tudo pra última hora — rosnou Oscar, em sua nova condição de empregado não remunerado de sua melhor amiga.
— Não deixei nada pra última hora. Ainda faltam dois dias pras aulas voltarem — Tata argumenta, jogando mil itens de pele em uma necessaire.
— As minhas malas estão prontas desde o começo da semana — tirou metade dos produtos e os devolveu à penteadeira.
— Porque você é um maníaco. A Lili e Juju também estão arrumando as bolsas hoje.
— E você não deveria seguir o mal exemplo delas.
— Elas não são mal exemplo, elas são normais.
— São desorganizadas, como você.
— Não quero ouvir você resmungando. Não foi pra isso que eu te chamei aqui.
— Eu sei, você me chamou devido a sua total inabilidade de organizar uma mala de maneira coerente.
— Também não te chamei pra me humilhar. Agora, me faça o favor de pegar a mala em cima do guarda-roupas. Não quero ter que subir em um banco.
Oscar obedeceu, a contragosto. Depois de todos aqueles anos, já estava acostumado à obrigação de ajudá-la para que Tata não levasse toda a sua casa para o colégio.
Aquele quarto já era seu também. Andaria por ele, sem tropeços, mesmo que sua visão fosse obstruída. As paredes lilases, a cama de casal próxima à porta, a escrivaninha onde se sentava sempre que Tata estava jogada na cama tagarelando sobre amenidades, tudo gritava familiaridade.
Seus movimentos já eram involuntários. Arriscaria dizer que sabia mais sobre as necessidades de Julieta do que ela mesmo o sabia. Talvez por isso sentia-se tão culpado. Era sua gêmea quem dividia aqueles metros quadrados com ele — a outra parte de sua alma. Esconder qualquer coisa dela nunca esteve em seus planos.
— Vou buscar alguma coisa pra gente comer — a garota comunicou.
— Acabamos de comer.
— Quer ou não?
— Sim.
Assistiu-a sair e deixá-lo em paz com sua própria ansiedade.
Em uma tentativa vã de pôr em ordem seus pensamentos, organizava a mala. Sabia que, disso, nada resultaria, porém, coisa alguma além disso estava em seu alcance. Não mais. Já havia deixado a história ir longe demais, para fora de suas mãos. Seus delírios adolescentes, suas fantasias infames e seus contos impudicos, agora, caminhavam livremente pela cidade, longe de seu domínio, não mais domesticados em seu quarto marcado pela insônia quente e balda.
Errou ao se colocar de costas para a porta e errou novamente ao fingir que não ouvia os passos leves que se aproximavam. Buscava forças em si para virar-se e dizer que fosse embora; não as encontrou. Errou mais uma vez eu permitir que a mão que tocava gentilmente sua cintura, por baixo da blusa, o fizesse enternecer.
Pendeu o pescoço para o lado, aberto a receber o beijo que ali seria depositado. Odiou-se por sua fraqueza.
— Você deveria estar aqui. — Queria soar descontente e enfurecido, todavia, sua voz saiu como um sussurro pecaminoso e prazeroso e Oscar sabia disso. Odiou-se ainda mais.
— Eu moro aqui — Pedro respondeu, com humor.
Virou-se para encará-lo. — Você me entendeu.
Sentiu as mãos de Pedro soltarem-no e teve de resistir ao impulso de buscá-las e pô-las de volta ao redor de si.
— Ela não vai subir agora. Acabei de vir da cozinha.
— Mesmo assim.
— Que tempo a mais nós temos, Oscar?
A isso, Oscar respondeu desviando os olhos para o chão de madeira encerada. Tornou a voltá-los para cima apenas quando Pedro tocou seu queixo, direcionando seu rosto até que estivessem novamente frente a frente, à centímetros de distância.
Pedro leu aquela alma torturada com a facilidade de um professor de literatura medieval.
— Não me odeie — sussurrou. — Eu não saberia viver com isso.
O calor do hálito de Pedro fez Oscar estremecer.
— Não odeio.
— Não minta pra mim.
— Não estou mentindo — confrontou-o com veemência, mesmo sabendo que ele estava certo.
— Sabe que eu não posso ficar.
— Sim, você pode.
— Não, não posso — Pedro afastou-se. — Achei que você, dentre todas as pessoas, entenderia.
— Eu entendo. É por isso que eu não te pedi pra ficar a vida toda. Eu só te pedi um ano. Um ano. Não deveria ser tão difícil assim, não se você diz que...
— Você pode me encontrar no ano que vem — interrompeu-o antes que a expressão de três palavras viesse em forma de acusação. — Pode ir morar comigo. Não entendo por que a distância é uma questão tão grande pra você, Oscar. Eu te esperaria.
— Não, não esperaria. Eu sei o que é esperar. Eu te esperei durante anos. Você nunca teve que esperar por nada! Você me teve quando quis e, agora, quer que eu me sujeite à sua súbita decisão de ir embora porque, de uma hora pra outra, aqui não estava mais bom pra você.
— Eu tentei... Juro que tentei.
— Você está quebrando nosso acordo e nem mesmo está se esforçando pra achar um meio termo. Por que sempre tem que ser do seu jeito?
— Não é sobre isso. Eu só quero o que é melhor pra nós dois. Eu não aguento mais um ano nessa cidade tendo que te encontrar às escondidas.
— E um relacionamento à distância é a solução?
— Sim! Quero poder dizer que, não, eu não estou solteiro. Quero ter amigos pra quem eu possa te apresentar, mesmo que seja virtualmente e não é como se eu estivesse indo pra outro país. São só dez horas de carro, Oscar. Pode ir me visitar.
— O que você quer é fugir e deixar a merda toda aqui pra que eu tenha que lidar com ela sozinho.
— Não é nada disso. Não precisa contar pra ninguém, se não quiser.
— E é claro que ir te visitar sozinho não levantaria nenhuma suspeita.
— Na verdade, não acho que levantaria. Essa gente se nega a ver a verdade, mesmo. No mínimo, vão fingir que não desconfiam.
— Um ano, Pedro. Eu só te pedi pra me esperar por um ano. Não consigo entender como isso pode ser difícil. Como você não consegue me dar um ano da sua vida se disse que queria me dar toda a sua vida. Ou isso era mentira?
— Você não vai conseguir me transformar em um vilão. É você quem prefere terminar do que aguentar um ano distante.
— Eu só estou antecipando o inevitável. Prefiro terminar agora do que receber uma mensagem, nos próximos meses, dizendo que sente muito, mas que conheceu outra pessoa.
— Então é sobre isso? Sobre suas inseguranças?
— Não minimize minhas questões psicológicas!
O silêncio encaixou-se entre os dois quando ouviram passos na escada.
— Não vamos discutir isso agora — Pedro encerrou a questão. — Eu te mando mensagem mais tarde — ciciou, segundos antes que a irmã entrasse no quarto, com dois sanduíches naturais e a expressão leve, por nada saber acerca do que acabara de acontecer.
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Antes que chova
Misterio / SuspensoA cidade de Santa Bárbara é abalada quando uma de suas jovens é assassinada de maneira misteriosa. Agora, Oscar, um dos melhores amigos da vítima, inicia sua trajetória em busca de respostas para o crime, a vida e o amor. Com seu coração em pedaços...