TER 07/02 - 19h00MIN

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O enterro não pôde começar às quatro, como previsto. Foi adiado por "complicações de saúde" — foi isso o que contaram às pessoas. A verdade é que tia Glória não está presente porque está sob vigilância suicida.

Não sei quanto tempo levará até que toda a cidade saiba a verdade sobre os ocorridos de hoje, na minha cozinha. Penso que isso era tudo o que podia acontecer de pior. Olho para o tio Levi como quem olha para uma ferida aberta, para uma hemorragia em uma vítima de acidente, sabendo que não possuí a perícia para cuidar do padecente. Olho para sua vulnerabilidade. E sei que em breve todos olharão para lugares ainda mais profundos do que veem agora e não quero isso. Quero proteger a memória de Julieta e quero proteger também sua família de todo este circo montado.

A cidade toda está aqui e ainda mais.

O diretor da escola veio; também duas dezenas de alunos, juntamente com professores e funcionários. Queria crer que estão aqui somente porque ela era amada e bem-quista, não porque estão curiosos.

Todavia, sei a verdade.

Olho para eles como quem observa abutres e planejo espantá-los. Contudo, planejo apenas em minha mente. Meu corpo não se move e minha boca não se abre conforme minha vontade. Ajo sob um automatismo excruciante e sinto que partes minúsculas de mim se rompem em grandes quantidades toda vez que respiro.

Minha perna dói. Manco todo o trajeto da igreja ao cemitério.

Percebo Oscar pelo canto do olho, encarando meu andar com o cenho franzido. Ele tem a decência de não perguntar nada.

Quando já estamos reunidos em semicírculo ao redor da cova, minha mente abandona o local. O padre fala alguma coisa, porém, não o escuto. Encaro Débora, a filha mais velha e Levi e Glória, ao lado do pai, mais próximos ao padre.

Não a veja há anos — nem ninguém.

Devo ter transparecido a confusão pois Tata me informa que ela chegou da Alemanha esta tarde e que foi ela quem ficou cuidando do velório enquanto Levi ia ao hospital.

Há quase uma década que ela partiu. Débora era o orgulho de toda a cidade. A bolsista de colégio particular que também ganhou uma bolsa para fazer faculdade, no exterior. Todos esperávamos que ela voltasse após se formar, mas ela não o fez.

Sinto que compreendo o seu motivo.

Já pensei inúmeras vezes em deixar Santa Bárbara e ainda penso. A maioria dos adultos não a deixou por causa do PIB per capita do município, pela arquitetura italiana bem conservada, que agrada aos olhos, ou para continuar tocando os negócios da família. Dizem que os imigrantes que construíram esse lugar eram romanos, mas eles já morreram, um por um. Agora, entre os 2.627 habitantes que restam, alguns ainda tentam preservar sua herança, ao fingir que não são brasileiros. É um lugar calmo, de fato. O ar é limpo, as crianças são livres e os adultos apenas fingem que também o são.

Já, eu, pessoalmente, não gostaria de fingir. Desejo a liberdade com toda a sua dor e glória. Não posso ficar, como Débora também não pôde.

Ela percebe que a encoro e me dirige um sorriso triste. Desvio os olhos para o caixão.

— Eu gostaria de saber com que roupa ela está vestida — sussurro para Tata.

— O vestido lilás — Lili é quem responde. — Eu que escolhi.

Só então percebo o quanto Lili está envolvida em tudo. Olhando novamente para Levi, não vejo a possibilidade de ele conseguir decidir alguma coisa e Glória... Bem, de certo eles precisaram da ajuda de alguém. Só então me toco que esse alguém foi Lili e não consigo mensurar a dor que ela sente agora.

Ela não dormiu. Chegou na igreja antes de todos os outros. Não foi para casa descansar. Ela só tem dezesseis anos...

— Até segunda ordem — ela prossegue —, quero ser enterrada com o vestido preto da Hermès.

— Primavera-verão, 2022? — Tata questiona e Lili confirma.

Abafo um riso.

— Eu não me importo com a roupa, mas quero a minha bota nova da Balenciaga — Tata nos orienta.

— Aquela coisa parece a pata de um alienígena — comento.

— Quero que seja dramático — ela dá de ombros.

— Combinado, então — Lili estende a mão para Tata e elas fecham o acordo mórbido.

Observamos o caixão descer, sem dizer mais nenhuma palavra. Nada pareceu apropriado. Percebo que Lili e Tata andam até suas famílias, mas permaneço no mesmo lugar — terrível erro.

Nosso diretor se aproxima de mim, com as mãos nos bolsos do terno. Assisto calo enquanto ele vem, a meios sorrisos e cabeça baixa, como se não soubesse direito como se portar. Para ao meu lado por cinco segundos antes de dizer:

— Meus pêsames. — Essas palavras não significam coisa alguma.

Sigo em silêncio, então ele diz o que realmente quer dizer:

— Vamos fazer uma homenagem para a Julieta na quinta, nos dois primeiros horários. Gostaria que você fizesse um discurso.

Sinto vontade de vomitar. Odeio a ideia de imediato.

— Não sei se sou a pessoa mais indicada — tento dissuadi-lo.

— Bem, eu pediria às meninas, suas amigas, mas você sabe como as mulheres são mais sensíveis... Não creio que consigam.

Discordo de cada palavra que sai da boca dele, contudo, não tenho ânimo para rebater — segundo terrível erro.

— Ótimo! — ele exclama. — Conto com você, então, Oscar.

Observo-o sair de perto, contendo dentro de mim a enorme vontade de mandá-lo a merda. Engulo em seco para evitar que meus pensamentos intrusivos vençam.

Ótimo. Agora tenho um discurso por fazer.






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