Fora de área

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Minhas pálpebras estavam tão pesadas que a ideia de dormir e deixar a loja ser roubada parecia bastante atraente.

Quer dizer, quem em sã consciência roubaria uma lojinha de jardinagem? A fachada havia sido pichada tantas vezes que os ladrões sequer saberiam identificar o tipo de estabelecimento, na verdade. Então, mesmo que acreditassem que adubo fosse ser muito valioso e concluíssem que deveriam, sim, assaltar uma lojinha de itens de jardinagem e não o banco da rua de trás ou a joalheria da outra esquina, como eles saberiam que aquele cubículo pichado com vidraças quebradas era uma? Eu mesma confundia de vez em quando.

Meneei com a cabeça, meu corpo concordando com a proposta.

Se piscasse por mais de um segundo, podia ouvir os anjos sussurrando as promessas de um bom sono dentro de minha mente. Estava sentada naquela cadeira há tanto tempo que a dormência de meus músculos até fazia com que ela parecesse confortável.

Estiquei as pernas, retirando as sandálias, e apoiei a parte de trás de minha cabeça contra o encosto da cadeira, Um arrepio percorreu minhas costas, e um longo bocejo pode ser ouvido por todas as sementes, adubos e vasinhos coloridos ao meu redor.

Não é como se fosse aparecer algum cliente, de qualquer forma.

— Olá!

Encarei a porta com o entusiasmo de um cadáver em decomposição, e meus olhos tiveram de subir um pouco até chegar ao rosto do recém-chegado cliente.

Alto, casaco preto, cabelos brancos penteados para trás. Os olhos azuis empalideceram com a luz do Sol quando se virou para fechar a porta.

— Bofuurin — Meus lábios desenharam a palavra, a voz muito baixa para que ele pudesse ouvir.

— Bom dia! — cumprimentou, e os lábios se prolongaram em um sorriso.

— O que está fazendo aqui? — questionei, as pontas de meus dedos deslizando ao redor do puxador da gaveta.

As sobrancelhas, quase tão pálidas quanto o cabelo, se uniram por um instante. Meus olhos desceram mais uma vez até o casaco preto do uniforme.

— Ah, não, não — Ele ergueu as duas mãos, balançando-as em rendição, uma risada escapando pelos lábios. — Não, não é nada disso. Não vim aqui procurando confusão ou… São sementes de girassol?

Meus olhos o acompanharam até uma das estantes. Seus dedos vagaram pela embalagem até achar a etiqueta.

— São — respondi, enquanto ele aproximava o pacotinho do rosto e apertava os olhos.

— Estão em promoção? — perguntou, o rosto voltado para mim mais uma vez.

— Não sai nenhum há duas semanas — esclareci, com o cenho ainda franzido.

Era algum tipo esquisito de emboscada? Ele viria até o caixa e um monte de outros colegas da Bofuurin chutariam as vidraças e invadiriam a loja.

Minha atenção continuou a acompanhá-lo quando pegou uma cestinha de plástico e começou a preenchê-la com as mais diversas sementes de flores.

Voltei a me sentar na cadeira giratória próxima ao caixa, meus dedos deixando o puxador da gaveta.

Não tinha o costume de julgar à primeira vista. Nem à segunda. Nem de julgar de maneira alguma, na verdade. Mesmo assim, ver alguém entrando no território de uma gangue rival para comprar sementinhas parecia muito para minha mente assimilar.

— Devia pelo menos ter escolhido outro casaco — comentei, e a atenção dele retornou a mim.

Ele esboçou um sorriso, retornando o foco aos vasinhos decorados.

— Não seria muito correto, seria? — questionou, agachando-se para examinar melhor outros vasos. — Não gostaria que entrassem na área da Bofuurin sem se identificar. E meus amigos não gostariam de saber que abandonei o uniforme por medo.

— Não é sobre ser correto, é sobre sair inteiro daqui — comentei, debruçada sobre o balcão do caixa. — Conheço gente aqui que te quebraria no meio antes de perguntar seu nome.

— Acho que consigo me virar — ele falou, pondo-se de pé mais uma vez e estendendo o braço para alcançar um par de luvas.

Concordei com a cabeça, desviando o olhar.

— Você faria isso?

Voltei a encará-lo.

— Disse que conhece pessoas que viriam para cima de mim só pelo casaco. Você é uma dessas pessoas? — indagou, caminhando até o caixa e apoiando a cestinha cheia de produtos perto do meu rosto.

Olhei para cima. Ele parecia mais alto à essa nova distância. Devolvi o olhar para a cesta.

— Sou muito pacifista — disse, depois de negar com a cabeça. — Se pudesse, acho que ficaria o mais longe possível de qualquer envolvimento com essas gangues — adicionei, ainda calculando o valor da compra.

Ele concordou com a cabeça, tateando o interior do casaco preto. Sua carteira era comprida, cheia de pequenas fotos enfiadas nos bolsos transparentes. Do último deles, retirou a quantia correspondente à compra.

— Ah, que droga — comentei, vasculhando as gavetas. — Estamos sem troco.

— Tudo bem, eu posso aceitar em alguma outra coisa.

— Acho que… — Meus olhos foram parar na rua, no pequeno grupo de homens que virava a esquina. As vidraças quebradas dificultavam o reconhecimento, mas qualquer um saberia exatamente de quem se tratava só pela cor dos casacos.

Engoli em seco.

— Não posso te deixar sair daqui agora.

mirrors - umemiya hajimeOnde histórias criam vida. Descubra agora