Consequências, parte II

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Escapamos dela assim que foi possível, o gostinho de chá ainda na boca quando nossos pés conseguiram tocar a calçada. A sensação que tomou meu corpo, e acredito que o de Umemiya também, foi de um alívio avassalador. Os dois pendurados em boias no meio do mar, erguendo as pernas para não serem devorados por tubarões, enfim dando um jeito de nadar até a praia, a salvação.

Não sou boa em descrever meus próprios sentimentos com as palavras apropriadas, então continuemos com a metáfora dos náufragos chegando a praia. Os dois, quando pendurados na boia, eram amigos, aliados em busca de um único objeto: o resgate. Já na praia, contudo, eles percebem que estão em um ambiente diferente, com recursos escassos, e que a amizade de antes não existe mais.

Eles devem lutar. Lutar até que o mais forte vença.

— Namorados, não é? — questionou, o tom de divertimento pingando da voz. — Acho que você tem algumas coisas pra me explicar.

Infelizmente, pra mim, eu era o náufrago mais fraco.

Minha mão tateou o casaco em busca do molho de chaves, meus olhos voltados para baixo, embora minha visão estivesse turva demais para que eu de fato visse alguma coisa. Demorei algum tempo para responder, primeiro, é claro, porque eu não fazia ideia do que falar, e segundo porque imaginei que a demora fizesse Umemiya pensar que, se eu não parecia tão nervosa para me explicar, o problema nem era tão grande assim.

Percebendo que minha demora já estava longa demais e que isso poderia acarretar em Umemiya pensando que eu não havia escutado e, céus, repetindo a pergunta, me apressei em respondê-lo:

— Eu sinto muito.

Evitei encará-lo, por mais curiosa que estivesse para saber sua reação. Finalmente acertei o maldito buraco da chave, girando a maçaneta e praticamente invadindo a lojinha de jardinagem.

Umemiya me seguiu, os passos mais lentos que os meus.

Devia ser muito bom ser a pessoa inocente nesse tipo de situação.

— Você gosta de mim?

Embora não fosse o objetivo, minha cabeça girou lentamente na direção dele, minhas sobrancelhas erguidas. No lugar de ficar corada, imagino que fiquei pálida com a pergunta, como se todo o sangue tivesse se encolhido de medo em algum canto do meu corpo.

— O quê?

Ele apoiou o ombro na moldura da porta, a cabeça ligeiramente inclinada também contra ela. O sorriso pequeno continuava apesar de tudo, incapaz de escapar da boca. Naquele momento, contudo, pensei que devia mais ser um hábito do que de fato uma expressão de felicidade.

Ele engoliu em seco, a mão se erguendo para coçar a nuca antes de retornar para a lateral do corpo e, enfim, se acomodar na curva do cotovelo quando ele cruzou os braços diante do peito.

— Gosta? — repetiu a pergunta, o cenho ligeiramente franzido, um tom fraco de vermelho começando a aparecer no rosto.

Ele estava envergonhado.

De fato constrangido com alguma coisa.

Desviei o olhar. Algo sobre olhá-lo naquele estado fazia com que eu sentisse que estava espiando uma cena íntima demais.

Parando de encará-lo, minha mente voltou a funcionar, as engrenagens se movendo vagarosamente, enferrujadas, até recuperar o ritmo normal.

Então, acabei retornando à pergunta.

Eu gostava dele?

Mesmo só dentro da minha cabeça, era difícil responder a algo assim. Pensando bem, eu não tinha certeza nem de que sabia como se gostava de alguém.

Eu não queria enfiar meus dedos nos meus próprios olhos quando estava com ele, então imaginei que tivesse algo a ver com gostar. Mas eu não queria fazer isso quando estava perto de muitas outras pessoas, queria dizer que eu gostava de todas elas também?

Isso era muito complicado.

Voltei a olhar pra ele, perguntando-me se poderia pedir uma pausa pra pensar e responder em outro dia.

— Eu não sei — falei, sentindo meu corpo murchar com a admissão.

— Não sabe? — O corpo dele se afastou da moldura da porta.

— Não, acho que não.

— Não gosta, então?

— Não, o segundo “não” foi de “não sei”, não de “não gosto” — expliquei, gesticulando.

Ele manteve os olhos sobre mim por algum tempo antes de concordar, suspirando. A mão retornou à nuca, não para coçar a pele, mas para afagá-la dessa vez.

— Tudo bem — falou, e eu foquei toda a minha atenção em seu rosto.

— Sério?

Ele assentiu.

— Eu também não devia ter te colocado sob pressão — Sorriu, culpado. — Pode responder quando achar melhor.

Concordei com a cabeça.

Mais uma vez, ele usava o quando e não o se.

— Eu só… — comecei a falar.

Eu só fico cansada do fato de todos da vizinhança pensarem que eu jamais conseguiria um namorado, é por isso que fiz a besteira de mentir e começar a fofoca de que eu tenho um. Era óbvio que eu não devia ter dito isso, mas uma parte minha queria que fosse verdade, mesmo que fosse outra pessoa. Não é sobre eu gostar de você, isso tudo foi sobre mim.

— Você…?

Neguei com a cabeça.

— Não, não é nada — garanti.

O Hajime continuou a me observar, quieto, mas acabou aceitando a falta de resposta.

— Mas não foi tão ruim assim, no final — afirmou, e me obriguei a voltar a encará-lo. — Eu nunca tinha te visto tão nervosa.

Suspirei, caminhando para o caixa.

— Eu não estava nervosa.

Umemiya riu, seguindo meus passos, os quadris se apoiando no balcão do caixa enquanto eu me sentava na cadeira giratória unida a ele.

— Você segurava a xícara com força, quase pensei em tomá-la da sua mão para que não acabasse quebrando a porcelana sem querer e se machucando com os cacos — disse, os olhos vagando até meus dedos.

— Estava tudo sob controle — reiterei, apoiando meus cotovelos nos braços da cadeira e me impulsionando com os pés para mais longe do balcão.

Umemiya riu.

Ele sentou-se no balcão, usando as palmas das mãos para erguer o próprio corpo do chão. O rosto virou-se para o lado, os olhos vagando pelas prateleiras da loja, o sorriso constante nos lábios.

— Eu estava pensando outro dia e percebi que…

Meus olhos se atentaram na porta, na maçaneta sendo girada, no movimento que a madeira fez quando ela foi aberta, no sininho recém-consertado soando, o barulhinho sempre alegre, independente do tipo de visita que a loja recebia.

Os uniformes vermelhos foram a primeira coisa que vi.

— A porta não estava bem fechada, você devia tomar cuidado com essas coisas, seu pai não está aqui por você — Um deles disse, suspirando.

De novo não.

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⏰ Última atualização: Jul 19, 2024 ⏰

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mirrors - umemiya hajimeOnde histórias criam vida. Descubra agora