Promessa e Recompensa

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— Não posso subir aí — falei, gesticulando com a cabeça.

— Hum? — murmurou em indagação, o rosto virado para mim. As sobrancelhas se ergueram, e um rubor fraco tomou conta da pele. Ergueu as mãos, exibindo ambas as palmas para mim e mexendo as duas enquanto se curvava na minha direção. — Ah, não, não tem só eu, não vamos ficar sozinhos, eu não queria insinuar que… Não, não foi isso que eu quis dizer.

— No prédio da Bofurin — falei, erguendo os ombros e dando um passo para trás.

Estar desse lado da cidade já não era uma boa ideia, então entrar na base de uma gangue rival seria implorar para morrer de um jeito não muito gentil.

Ser dentista de um tubarão talvez fosse um pouco mais seguro. Ou chutar o joelho de um ladrão de banco. Ou acampar dentro da toca de uma cobra.

— Da Bofur… Ah. Claro, claro — falou, as mãos caindo nas laterais do corpo. Concordou com a cabeça antes de arranhar a garganta e estalar a língua, as mãos movendo-se para os quadris. — Eu vou dar um jeito nisso, você não precisa subir — garantiu. — Só me espere aqui embaixo até eu voltar. Eu prometo que volto — acrescentou, dando dois tapinhas no topo da minha cabeça antes de seguir até o interior da escola e desaparecer do meu campo de visão.

Minha mão foi até o topo da minha cabeça, as pontas dos dedos encostando no ponto em que ele tocou como se eu fosse um cachorro.

Balancei a cabeça ligeiramente antes de encostar a lateral do meu corpo no portão diante do prédio da escola. Cruzei os braços, mantendo a mesma expressão de poucos amigos que aprendi com meu pai. Era uma das poucas coisas que ele havia me ensinado, mas eu fiz questão de dominá-la e aperfeiçoá-la até conseguir proficiência suficiente para que ela funcionasse com toda e qualquer pessoa. Se soubesse modular bem, era quase um super poder.

Alguns alunos passaram e, diante da efetiva técnica milenar, passada de pai para filha, nenhum deles ousou falar comigo.

Umemiya podia ser uma espécie de anjo reluzente que descia dos céus com uma harpa na mão cantando sobre amizade e gentileza, mas nada me garantia que o resto da Bofurin fosse seguir o exemplo dele.

A voz de Umemiya retornou aos meus ouvidos um pouco mais tarde do que imaginei que fosse voltar, e, quando enfim fez isso, ela chamava pelo meu nome.

Ergui a cabeça, minhas costas contra o banco da parada de ônibus, minhas mãos sobre meu estômago, unidas. Virei o rosto para o lado pouco antes dele finalmente me encontrar com o olhar.

— Ah, você está aí — disse, caminhando até mim. Apoiou um dos joelhos no banco, um vaso com uma plantinha de folhas amareladas nos braços. — É um alívio, pensei que tivesse ido embora enquanto eu estava no prédio.

Meus olhos subiram da planta até seu rosto.

O pior é que teria sido uma ótima ideia.

Devia pensar em algo assim na próxima, seria o mais esperto a fazer.

— Não gosto de ficar em pé por muito tempo — expliquei, minha atenção retornando ao vegetal. — Está regando direito?

— Todos os dias — respondeu, e meus dedos tocaram a folha. Apesar do aspecto amarelado, não estava seca e quebradiça, mas murcha.

— Não conheço muito sobre as espécies — alertei, e ele concordou com a cabeça, atento. — Os nomes, quero dizer. Eu nunca decorei, eu só…

Eu só ouvia quando ela falava e aceitava como uma verdade indiscutível.

Ela saberia melhor o que fazer, não eu.

— Você só…? — indagou, em expectativa.

— Tente regar um pouco menos — falei, por fim. — Não sei se é uma regra geral, mas normalmente elas ficam assim quando estão encharcadas. Tente diminuir, talvez duas ou três vezes por semana seja o suficiente pra ela.

Umemiya concordou com a cabeça.

— Tudo bem — disse, segurando o vasinho com apenas uma das mãos enquanto retirava o celular do bolso do casaco, anotando minhas recomendações no bloco de notas do celular. — Vou fazer como mandou.

— Espero que dê certo — murmurei, encarando as pequenas fotos dentro da capinha do smartphone. Ele sorria largamente em todas elas, cada uma com um novo grupo de pessoas, todas com os casacos escuros da Bofurin.

Eu nem conhecia tanta gente assim.

Um sorriso surgiu em seus lábios, e percebi que olhava para mim.

— São meus amigos — disse, orgulhosamente, apoiando o joelho no braço do banco e inclinando-se.

Tomando um pouco de fôlego antes de começar, ele apontou para todos os rostinhos presentes na capinha, dando uma quantidade de descrições tão absurda que meu cérebro enviou toda a informação diretamente para a memória de curto prazo.

Talvez fosse um pouco cruel da minha parte ignorá-lo, mas minha mente não estava preparada para absorver tanto conhecimento de uma única vez. Ignorar tudo que saiu da boca dele naquele momento foi quase que um ato de sobrevivência, uma medida desesperada para que meu cérebro não explodisse ali, naquela parada de ônibus.

Sendo assim, dediquei meu foco a tudo que eu conseguia tomar para mim naquele momento. Às aparências variadas dos integrantes da gangue, à atmosfera curiosa que envolvia cada uma das pequenas fotografias, à falta de coordenação motora evidente no recorte feito em algumas delas para que todos os rostos aparecessem, ao hálito de menta que Umemiya tinha enquanto falava perto o suficiente de mim para que eu não conseguisse ouvir bem sua voz.

Mesmo assim, ainda era muita informação.

— Ah, seu barquinho! — ele exclamou, guardando o celular de volta ao bolso. — Eu quase esqueci, devia ter me lembrado.

Na verdade, eu tinha esquecido também.

— Eu só disse umas três palavras, não precisa pagar nada por isso.

Umemiya suspirou, abaixando-se ao meu lado, agachado, os cotovelos no braço do banco como se falasse com uma criança.

— Você não falou só “umas três palavras”, você saiu de onde estava para vir aqui me ajudar, não parou de olhar para os lados desde que saímos de lá porque está assustada com a ideia de ter vindo comigo — comentou. — Eu prometi que ia te recompensar por isso, então eu vou.

Sem saber o que falar, acenei com a cabeça em afirmação.

mirrors - umemiya hajimeOnde histórias criam vida. Descubra agora