Levei a xícara de chá até meus lábios, estava quente, fervendo, mas ignorei qualquer instinto de sobrevivência e engoli. Devolvi-a ao pires, meus olhos atentos à gola da camisa branca de Umemiya já que encarar seu rosto estava fora de cogitação.
Eu sabia que a culpa era minha. Era uma verdade difícil de enfrentar, com certeza, mas eu tinha consciência de que tudo aquilo só havia começado por uma atitude minha.
Sim, tudo bem.
Essas coisas acontecem.
É a vida.
Mesmo assim, tendo em vista a forma como essa minha pequena e inofensiva mentirinha foi sendo soterrada por uma sequência absurda de acontecimentos, eu tinha plena razão em culpar, em parte, o próprio destino. Eu entendia meu erro, compreendia as consequências.
Mas tantas assim?
Eu já tinha aprendido a minha lição.
Já tinha recebido punição suficiente.
Prolongar meu sofrimento como se eu fosse uma massa de pizza sendo alargada até rasgar de tão fina não era necessário.
Mas essa era a minha opinião, e, aparentemente, a vida parecia ter uma bem diferente.
Voltemos aos fatos.
O fim da tarde começou com minha chegada à loja de jardinagem. As aulas tinham acabado, e, como de costume, ignorei a vontade de ir para casa tirar os sapatos e me peguei girando a maçaneta da porta da loja.
Se eu soubesse do que viria a acontecer, teria ignorado esses passos e simplesmente me arremessado contra a vitrine para entrar mais rápido e me esconder lá dentro.
Mas eu não sabia, então, antes que pudesse de fato abrir a loja, uma voz familiar me chamou:
— Ah, você chegou.
Em um primeiro momento, achei que fosse uma invenção da minha cabeça. Contudo, assim que olhei para o lado, vi a cabeça de Umemiya saltando da porta da casa da vizinha, Sra. Yamazaki.
Meu coração pulou ao menos três batidas antes que eu reunisse coragem suficiente para respondê-lo.
— Cheguei — disse, mais uma vez cometendo o erro de prolongar a conversa no lugar de apenas me arremessar contra a janela. — O que faz aqui? De novo.
Umemiya sorriu, culpado.
— Eu prometi a ela que voltaria para tomar mais uma xícara de chá — falou, pendendo a cabeça para o lado. Os olhos permaneceram sobre mim enquanto ele mordia o interior da bochecha. — Você devia vir também.
Franzi o cenho.
Ele riu.
— Eu estava falando sobre como me ajudou com minhas plantas — falou. — Mas não sei explicar os detalhes tão bem assim. Preciso da sua ajuda.
Aqui, mais um grande erro foi cometido por mim.
Não gosto de ajudar pessoas.
Eu sei que parece uma confissão horrível a se fazer, mas há verdades na vida impossíveis de evitar, e essa é uma delas.
Além disso, não é como se eu só não gostasse. Eu também não era tão qualificada.
É um posicionamento que vale para praticamente toda criatura viva na Terra. Eu não sirvo para ajudar ninguém, então sempre evito ao máximo. Alguém mais capacitado e mais solícito vai dizer um serviço melhor, eu sei que vai.
Minha mão estava sobre a maçaneta, e meus dedos a apertaram com tanta força que os nós deles empalideceram.
É só dizer não.
Não. N-A-O-til. Não.
Invente uma desculpa.
— Tudo bem — eu disse, desviando o olhar de volta à porta e trancando-a mais uma vez antes de recolher as chaves.
Uma de minhas mãos devolveu o molho de chaves ao bolso, a outra segurando a alça da mochila enquanto eu, o carneirinho, ia de encontro à Umemiya, o lobo sanguinário.
Ele manteve a porta aberta enquanto eu entrava, o que pode parecer cavalheirismo, mas era mais como uma garantia de que eu não sairia em disparada assim que algo desse errado.
Depois de deixar os sapatos ao lado da porta, saímos andando pelos cômodos, chegando até a sra. Yamazaki, que, cuidadosamente, limpava o vidro de um dos armários cheios de louça.
Ela olhou por cima do ombro, estreitando os olhos assim que me viu, como se tentasse me reconhecer.
— Ah, é você, querida — disse, limpando o último cantinho da vidraça antes de pôr os óculos de volta ao rosto. — Esse rapaz apareceu quase que de surpresa, eu mal lembrava que havia feito com que prometesse voltar aqui — ela adicionou, cuidando de servir mais uma xícara de chá para mim.
Deixei a mochila ao meu lado, juntando-me à mesa.
— Perguntei sobre o relacionamento de vocês, e ele estava me contando com tanta afeição — ela continuou, e meus olhos congelaram no centro da mesa, a xícara diante de meus lábios. — Você tem sorte. Na minha época, eles costumavam ser mais frios.
Não.
Não.
Senti os olhos de Umemiya caírem sobre mim, e não me atrevi a retribuir de forma alguma. Engolindo todo vestígio de bom senso que sobrava dentro de mim, respondi:
— Sim — Assenti, engolindo mais um gole do chá fervente. Se queimasse minha garganta, talvez pudesse parar de responder. — Muita sorte.
Pela visão periférica, notei que Umemiya sorria para mim, os olhos quase fechados enquanto tomava mais um gole do chá.
Espiei-o pelo canto dos olhos, esperando que minha expressão comunicasse tudo que eu queria dizer.
Eu sinto muito.
Eu posso explicar depois.
Quando eu vi, eu já tinha feito. Foi burrice. Eu não estava pensando direito. Foi mais forte que eu.
E, é claro, o que mais você “contou” a ela sobre o nosso relacionamento?
O Hajime apenas continuou a sorrir, o que entendi como você pecou, e essa é a sua penitência.
— Os filhos de vocês vão ser lindos no futuro.
Desviei o olhar dele imediatamente.
Eu devia mesmo ter corrido quando tive a chance.
As mãos dele estavam sobre a mesa, e pude vê-las paralisadas por um tempo assim que o altamente constrangedor comentário sobre os filhos foi proferido. Arrisquei-me a subir o olhar até seu rosto, vendo que ele também evitava olhar para mim, mantendo a atenção na idosa dona da casa.
Suas bochechas estavam queimando, os ombros tensos, os dentes mordendo o interior da bochecha. Se havia algo bom nisso tudo, era saber que mesmo Umemiya tinha suas fraquezas.
— Não estamos pensando nisso por enquanto — ele falou assim que conseguiu se recuperar e, quando voltou a olhar para mim, eu já havia devolvido minha atenção à interessantíssima maneira como o chá ficava parado dentro da xícara se eu não a movesse do lugar.
— Hum? Ah, sim, claro, vocês ainda são muito jovens pra isso, com certeza — Ela concordou, depois de assentir algumas vezes. — Não é hora de pensar em filhos, isso mesmo. Vocês têm de estudar e mudar o futuro desse país.
Concordamos os dois, eu evitando sua cabeça ao olhar para a parede atrás dele, ele evitando a minha ao encarar o armário de louça à minha esquerda.
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mirrors - umemiya hajime
Fanfiction[Nome] nunca havia esperado que algum cliente fosse aparecer naquele fim de tarde. A lojinha de jardinagem era sempre tão monótona que ver alguém além dela perambulando entre as prateleiras parecia uma cena saída de sua imaginação. Mas não era, Haji...