Desentendimento

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— E então?

O rosto dele estava apoiado nas palmas das mãos, os olhos sobre mim, as sobrancelhas erguidas em expectativa. Uma câmera apontada para mim talvez fosse um pouco menos invasiva.

— Obrigada — falei, devolvendo minha atenção ao barquinho. Metade dele já era apenas uma lembrança.

— Não, eu quero saber o que achou — esclareceu, relaxando as costas contra o banco vermelho estofado.

— É bom — respondi. — Mas você já devia saber disso, eu acho — acrescentei, minha atenção indo do meu barquinho pela metade ao dele, agora só mais uma mancha azul açucarada num prato de sobremesa.

Ele riu, usando uma das três pontas do garfo para desenhar pequenas espirais na mancha azulada.

— É meu trabalho como seu amigo garantir que o que come não está envenenado ou vai te fazer mal — brincou, e meus olhos subiram até seu rosto.

Era curiosa a naturalidade com a qual ele me chamava de sua amiga como se não tivéssemos nos visto só três ou quatro vezes.

— E está?

— Se estiver, acho que vou ter que ir ao hospital com um sorriso satisfeito no rosto — respondeu, os olhos voltando-se para a porta do Café Pothos. O sorrisinho brincalhão se alargou no rosto assim que ela foi aberta.

Ele ficou de pé, as mãos movendo-se para a mesa enquanto se levantava e andava em direção à entrada, os braços abertos.

— Kotoha! — exclamou, alegremente, e a garota de cabelos curtos, a mesma que havia acabado de abrir a porta, deu um passo para o lado, escapando do cumprimento.

A garota suspirou, cumprimentando a garçonete em serviço antes de vestir o mesmo avental verde que ela.

— Você não costuma vir aqui fora do meu turno — ela disse, os olhos castanhos voltando-se para Hajime.

— Vim com uma amiga — explicou ele, gesticulando em minha direção. Kotoha seguiu a sugestão com o olhar até que pudesse me ver.

— Oi — ela falou, um sorriso nos lábios enquanto acenava de maneira simpática para mim. Retribui o aceno, contendo-me para não lamber o garfo após a garfada final no barquinho. — Sua escola não liberou os alunos no feriado?

Maldito uniforme.

— É uma longa história — respondi, e Kotoha continuou sorrindo, concordando com a cabeça.

Os olhos dela retornaram a Umemiya. — Você não costuma trazer garotas aqui.

Devolvi meu foco ao prato de sobremesa ainda manchado em azul, meus dedos brincando tediosamente com o cabo do garfo.

Umemiya apoiou os cotovelos no balcão. De onde eu estava, conseguia distinguir as duas vozes. Apesar da resistência inicial de Kotoha, a conversa fluiu tranquilamente.

Mais do que isso, eles pareciam próximos. Íntimos.

Meus olhos vagaram até a janela. Lá fora, a  cidade já havia sido banhada pelo azul, os postes começando a iluminar as ruas.

Levei a borda do copo aos lábios por uma última boca, tomando os últimos goles de refrigerante antes de devolvê-lo à mesa, vazio, as pedrinhas de gelo já pequenas no fundo.

Debrucei-me sobre a mesa, meu queixo sobre os braços, meus olhos vagando pelo Pothos até encontrar Umemiya. Ele havia deixado o boné vermelho no prédio da Bofurin e posto o sobretudo preto com forro verde sobre as roupas na mesma ocasião. Os óculos de leitura também já não estavam mais diante dos olhos, então aquela era a versão de Umemiya mais próxima a que eu tinha visto quando nos conhecemos.

Os dedos vagaram pelos fios brancos dos cabelos, penteando-os para cima. Ele virou o rosto para mim, os olhos azuis caindo sobre os meus antes que eu tivesse tempo de desviar o olhar.

— Ah, você já acabou? — indagou, encarando meu prato já vazio. Corrigi minha postura, concordando com a cabeça.

Fiquei de pé, pegando o blazer do uniforme sobre o assento ao lado do meu e vestindo-o.

— Você já vai? — ele perguntou, deslizando na banqueta vermelha onde estava sentado até ficar de pé.

— Meu pai não gosta quando chego tarde — respondi, minha atenção dispersa demais para que eu acertasse o buraco da manga direita do blazer na primeira tentativa.

— Ah, sim, bem, tudo bem — disse, as mãos deslizando até os bolsos do sobretudo. Um dos pés se moveu, a ponta acertando o piso algumas poucas vezes antes de parar. — Espere só um instante, só até que eu pague a conta, vou com você até onde puder — somou, virando-se de costas para mim e retirando a carteira do sobretudo.

— Não vou me perder — falei assim que ele ficou de costas, e Umemiya virou o rosto, espiando-me pelos cantos dos olhos azuis. — Não precisa me levar, eu vou ficar bem.

Ele mordeu o interior da bochecha, deixando algumas notas sobre o balcão antes de voltar para mim mais uma vez.

— Você tem certeza? Eu realmente não me importo de ir com você até onde der — Pendeu a cabeça para o lado, alguns dos fios brancos dos cabelos saindo do lugar.

Meus olhos se dirigiram à porta antes que eu negasse com a cabeça.

— Vou ficar bem — repeti, apressando meus passos até o lado de fora do Pothos. 

•••

Ter posto o uniforme naquele dia havia sido uma ideia ruim. Sozinha, com a ventania fria esbarrando em minhas pernas sob a saia, ela se tornava bem pior.

Parei de andar, meus olhos voltando-se para o semáforo. Usei meu pé para coçar a lateral da minha perna.

Eu não gostava de atrapalhar.

Não era minha função. Eu gostava de ser uma peça de substituição, algo posto em um espaço para ocupá-lo até que outra peça, a original, a verdadeira, aparecesse. Peças de substituição não eram necessárias se as peças originais já estavam lá, então elas já podiam ir embora, estavam liberadas, podiam descansar. Alguns de nós foram feitos para ser peças de substituição.

Balancei a cabeça quando o semáforo mudou de cor, meus passos se apressando entre a multidão para cruzar a rua.

Cruzei mais três ruas até que a multidão diminuiu exponencialmente. 20 cabeças ocupadas foram reduzidas para 5, então para 3, então para uma.

O frio aumentou quando fiquei sozinha, as pontas dos meus dedos, geladas, apertavam a barra do blazer. Olhei para os lados algumas vezes.

O uniforme de fato havia sido uma péssima ideia.

Antes que desse o próximo passo, uma mão tocou meu ombro, era grande, dedos longos, aperto firme. Engoli em seco, um arrepio escalando minhas costas.

Minhas duas mãos se moveram em um mesmo segundo, e, assim que recuperei a integridade dos meus sentidos, percebi que eu estava com um joelho contra o meio das costas de alguém, imobilizando seus dois braços e pressionando seu corpo contra a parede.

— O que você… — Meus olhos pararam na palidez dos cabelos, claros apesar da penumbra. — Umemiya?!

mirrors - umemiya hajimeOnde histórias criam vida. Descubra agora