Umemiya Hajime possuía uma série de defeitos que o tornavam potencialmente perigoso para pessoas como eu.
A princípio, ele era legal demais.
Não legal do tipo “ah, faço isso para parecer uma pessoa melhor, veja como sou um ser humano gentil e com ótimas intenções, hahaha”, não, não, ele era de fato legal demais.
E isso transparecia nele de modo inevitável. Tentar impedi-lo de ser uma pessoa legal seria como tentar afundar uma boia.
— O sino não funciona — avisei enquanto ele balançava a porta de um lado para o outro, os olhos azuis voltados ao sininho imóvel que sinalizava a entrada de clientes.
Ele fechou a porta, estendendo os braços até o topo dela.
— O que está fazendo? — questionei, embora ele preferisse ignorar minha existência naquele momento. — Não precisa consertar.
— É só dar um nózinho e… — prosseguiu, como se fosse um maestro das próprias ações. — Pronto.
Então olhou para mim, a mão abrindo e fechando a porta algumas vezes, o sininho voltando a cantar.
Assenti com a cabeça.
— Obrigada.
Ele esboçou um sorriso, deixando a porta aberta mais uma vez.
— Vamos?
•••
E retornávamos à minha análise sobre seu comportamento.
Meus olhos repousaram sobre sua nuca enquanto eu o seguia pelas ruas a uma distância segura o suficiente para que ninguém pensasse que fossemos amigos.
É claro que, como o ser humano legal demais que ele era, era situação não se manteve por muito tempo. Assim que entramos o suficiente no interior da área da Bofurin, ele desacelerou os próprios passos, passando a caminhar ao meu lado.
— Eu realmente não sei o quanto posso ajudar nisso — falei assim que soube que ele estava perto o suficiente para me ouvir bem.
— Não precisa ser modesta, a sra. Yamazaki me disse que você mesma cuida das plantinhas da loja todos os dias.
Olhei para ele antes de desviar o olhar para a rua mais uma vez. Eu deveria ficar preocupada com aquela senhorinha me vigiando sem eu saber?
— É só uma delas que está daquele jeito, e tenho medo de que acabe passando para as outras — disse, suspirando, o cenho ligeiramente franzido.
Era curioso como ele falava da horta como se falasse de um dos filhos pegando uma gripe.
— Pode ser algum inseto, talvez só precise de pesticida ou algo assim — contei, cruzando os braços.
Ele concordou, enfiando as mãos nos bolsos das calças. Não tão involuntariamente assim, imitei seu movimento, minhas mãos se alocando no fundo dos bolsos de meu casaco. Era estranho estar usando o uniforme escolar fora da escola em um feriado e longe demais das paredes seguras da loja de jardinagem, mas imaginei que pedir para Umemiya me esperar fora da minha casa até que eu trocasse de roupas não tinha muitas chances de acabar bem.
— Qual sua flor favorita? — perguntou, sem tirar os olhos azuis da calçada que se alongava diante de nós.
— Nenhuma — respondi, também mantendo minha atenção sobre o concreto da calçada. — Por quê?
— Não sei bem como vou te pagar por me ajudar nisso, então estava pensando em te dar alguma muda que eu tenha — contou, a cabeça pendendo para o lado, os lábios comprimidos. — As de flores ainda não estão tão grandes assim, mas assim que tiverem um tamanho considerável, posso entregar alguma para você.
— Não precisa fazer isso, não saí esperando ganhar nada em troca — eu disse, negando com a cabeça. — E não gosto tanto assim de flores, também.
Ele virou a cabeça para mim.
— Não?
Neguei com a cabeça mais uma vez.
— Mas você cuida tanto das da loja, pensei que gostasse delas — admitiu, sem desviar o olhar de mim agora que tinha passado a me fitar.
— Não cuido porque gosto delas. Cuido porque elas morreriam sem mim, e não quero que morram — contei.
— Isso é gostar, não?
— Não quero que a maioria das coisas morra — Minhas mãos deixaram meus bolsos, meus braços cruzando-se diante de meu peito. — Não quer dizer que eu goste de todas elas.
Umemiya concordou com a cabeça. Ele esticou os braços, alongando-se antes de também cruzar os braços diante do busto.
— É uma pena, então — disse, a atenção voltando-se à fachada das lojas. — Do que você gosta, então?
Era uma pergunta difícil. Eu sabia muito bem de todas as coisas que detestava, mas gostar? A lógica seria fazer o caminho inverso, pegar todas as coisas e eliminar todas as que eu odiasse, detestasse, fosse contra ou mesmo não visse tanta graça. O que sobrasse provavelmente seria algo que eu pudesse gostar.
— Algum livro? Alguma camisa estampada? Eu tenho várias, talvez pudesse te dar alguma. Alguma comida em especial? Algum doce?
Olhei para ele e, assim que ele me espiou pelos cantos dos olhos, sob os longos cílios pálidos, percebi que caíra em uma armadilha.
— Qual?
— Nenhum, nenhum — falei, e o rascunho de uma futura risada surgiu em sua boca.
— Não vou julgar você por isso. Vamos lá, qual?
Respirei fundo.
Pessoas muito legais vão ser a ruína da vida na Terra.
— Aquele do barquinho azul com morangos cortados pela metade em cima e calda de chocolate — admiti, gesticulando. — Que se come de colher, com o barquinho comestível.
Umemiya concordou com a cabeça.
— Prometido.
Assenti também, desviando o olhar mais uma vez.
Não queria tanto admitir isso dentro de minha cabeça, e as chances de admitir isso fora dela eram completamente inexistentes, mas eu me sentia feliz como um cachorro que se soltou da guia.
Não que eu não pudesse comprar as sobremesas, meu pai garantia que eu soubesse exatamente onde pegar dinheiro sempre que precisasse. Só existia alguma coisa satisfatória em ganhar algo.
Como a surpresa de ouvir sua música favorita no rádio do carro de repente sem precisar ter ido procurá-la por conta própria.
Era uma reação puramente humana.
— Tudo bem.
— Uau — falou, um sorriso preso nos lábios.
— O quê?
— Você acabou de concordar com isso sem tentar me convencer do contrário. É um marco na nossa amizade.
Que maravilha, ele ficou convencido. Deve estar achando que eu mataria alguém por ele também, que roubaria velhinhas no metrô, que invadiria um banco.
— Não quero correr o risco de que você volte atrás — admiti.
Ele riu.
— Não vou. Está prometido, não está?
Concordei com a cabeça, chutando uma pedrinha na calçada com a ponta do pé.
— Pode parar, nós chegamos.
Olhei para ele, meus olhos foram até a fachada do prédio diante de nós antes de retornarem a ele.
— Você está falando sério?
VOCÊ ESTÁ LENDO
mirrors - umemiya hajime
Fanfiction[Nome] nunca havia esperado que algum cliente fosse aparecer naquele fim de tarde. A lojinha de jardinagem era sempre tão monótona que ver alguém além dela perambulando entre as prateleiras parecia uma cena saída de sua imaginação. Mas não era, Haji...