Inocência

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Acordei com a barulheira miserável no quintal dos fundos. Suspirei, abrindo os olhos. As cortinas mantinham a escuridão do quarto, embora, o que era uma pena, não servissem também para isolar o som que vinha de fora.

Esfreguei os olhos, sentando-me no colchão antes de me pôr de pé e me arrastar até a janela. Por uma fresta, espiei o que acontecia lá fora.

Dois dos homens do meu pai espancando um pobre coitado que devia ter ficado devendo algum trocado. Estreitei os olhos, tentando reconhecer o rosto do homem esmurrado, o que não resultou em coisa alguma.

Abri a porta e, ainda do segundo andar, conferi se meu pai estava lá embaixo.

Ninguém.

Desci os degraus ainda descalça, o som das meias abafando meus passos conforme seguia escada abaixo. O café da manhã acabou rapidamente, não porque eu estivesse com fome, mas porque comer rápido significava que eu poderia sair rápido.

Não sentia fome pela manhã há alguns anos, e não esperava que aquilo fosse mudar em uma terça-feira qualquer.

Vesti o uniforme, embora fosse feriado.

O bom de meu pai ser meu pai é que a única pessoa que se parecia se lembrar da importância desse parentesco era eu. Logo, ele tinha tanto interesse pelo calendário seguido pela minha escola quanto eu tinha a respeito dos “negócios da família”.

Segundo o que havia aprendido em sala de aula, meu pai e eu vivíamos uma espécie de Guerra Fria. Com a diferença de que a paz armada não era causada por algum tipo de medo de destruição mútua, mas pela falta de determinação suficiente para que qualquer um dos lados atacasse o outro.

Atravessei a porta com a mochila nas costas, descendo rua abaixo e virando à esquerda duas vezes. Então à direita mais uma vez antes de continuar avenida abaixo até, finalmente, chegar à fachada bastante convidativa da loja de jardinagem, com as vidraças quebradas — algumas mais ou menos consertadas com fita adesiva, a maioria não — e as janelas embaçadas.

Se aquele lugar fosse um portal para outra dimensão, absolutamente ninguém imaginaria.

Girei a maçaneta antes que minha cabeça percebesse que eu mesma havia trancado aquela mesma porta na noite anterior. Tateei os bolsos do blazer do uniforme, algumas moedas, um pacote de bala. Nada de chave.

Suspirei.

— Bom dia, minha filha.

Ergui a cabeça, o rostinho redondo e enrugado da Sra. Yamazaki voltado para mim.

— Bom dia — respondi, incapaz de evitar o cenho franzido.

Apesar de nos vermos todos os dias há algum tempo, ela nunca havia nem mesmo tossido alto o suficiente para que eu ouvisse. Então ouvi-la usar palavras de verdade era como ver um alienígena descendo à Terra. O tipo de evento raro o suficiente para te deixar com um pouco de medo de ser abduzida de repente.

— O seu namorado é um um rapaz tão simpático — continuou, desviando o olhar de mim.

Oh, agora fazia sentido.

— Ah, é? — Ergui as sobrancelhas, um sorriso crescendo no interior de minha boca e quase transparecendo nos lábios.

Aqui é necessário um adendo. Espero que entenda que, tendo crescido sem uma mãe do lado, eu só havia aprendido que mentir e omitir eram coisas parecidas e igualmente condenáveis por boatos. E não se pode confiar sempre em boatos, não é mesmo? Sempre tinha a chance de mentir ser a coisa certa a se fazer, quem sabe?

Ela voltou a olhar para mim, o rosto iluminado com a ideia de que eu talvez quisesse compartilhar alguma informação nova — talvez não-tão-verdadeira, é claro — sobre meu — também não-tão-verdadeiro — relacionamento.

mirrors - umemiya hajimeOnde histórias criam vida. Descubra agora