Dois Coelhos

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crisglaudma
crisglaudma
Música: Chasing cars - Snow Patrol

Dois coelhos

Há algumas coisas na vida que são como chasing cars, uma correria sem sentido em busca de algo que não vale a pena, mas que te consome até às raias da loucura. É como me sinto agora, enlouquecida ao olhar pro chão e ver o resultado da obsessão que me consome há mais de três anos. Desde que tudo que eu mais amava no mundo foi brutalmente retirado de mim.
- Por quê? - ele pergunta segurando a perna ensanguentada.
Sorrio de um jeito amargo, porque ainda não é suficiente. Então me dou conta de que nada será capaz de anular o amargor na boca e a dor constante no peito que aperta até quase me sufocar.
Mas eu precisava fazer tudo ao meu alcance para destruir todos os que destruíram minha vida. Foram anos de extrema dor e não apenas no sentido figurado, porque eu senti em cada músculo e fibra do meu corpo a transformação que precisei realizar para tornar este momento possível.
Há três meses eu desembarquei neste lugar. Na verdade, fui literalmente cuspida pelo mar bravio, as águas expulsando uma navegadora que ousou enfrentar uma tempestade em seus domínios.
Senti a consciência voltando aos poucos. Gemendo ao sentir dor por todo corpo. Respirei com dificuldade, arfando, gemendo mesmo sem querer. Abri os olhos e rapidamente fiz uma vistoria ao redor enquanto tentava me mexer. Mas um gemido alto e sofrido deixou meus lábios, como se cada movimento fosse o maior dos sacrifícios, meus membros pesando toneladas.
- Calma. - Olhei na direção de onde ouvi a voz grave, um arrepio intenso percorrendo meu corpo. - Está tudo bem agora.
O homem que falou comigo estava parado sob o portal com uma bandeja na mão, a outra para trás do corpo, como se escondesse algo nas costas. Ele era impressionante. Grande, forte, olhar penetrante, cabelos e olhos negros, a pele alva. As mãos grandes, os dedos longos, o peito e ombros largos, braços musculosos. Uma máquina aparentemente perfeita, perigosa.
- Onde estou? Quem é você? O que aconteceu comi... - Tentei me mexer outra vez e me arrependi, a dor irradiando pelo corpo.
- Você sofreu um acidente.
- Acidente? - Ele assentiu. - Como? Onde?
- Você estava em um barco, suponho. Houve uma tempestade no mar no dia em que te encontrei, muito perigosa. Estava inconsciente na praia, pedaços da embarcação espalhados na areia. - Ele entrou no quarto e colocou a bandeja na mesa de cabeceira. - O que fazia no mar com um tempo daqueles?
- Não... sei. - Franzi o cenho, sentindo uma dor aguda na cabeça.
- Não sabe? - Balancei a cabeça de um lado para o outro, mas logo me arrependi. - Posso saber seu nome? E de onde estava vindo? - Coloquei as mãos na cabeça e as apertei com força. - Não se lembra?
- Não. Ah, meu Deus! Não me lembro de nada!
- Nadinha? - Ele insistiu.
- Já disse que não me lembro. O que quer que eu faça?
- Desculpe. - Ele se sentou na cama e eu me afastei, gemendo de dor por causa dos movimentos bruscos. - Calma. Se eu tivesse intenção de fazer algo, teria feito enquanto estava inconsciente. Não acha?
- Não sei de nada. - Olhei pelas portas de vidro e vi o mar. - Onde estamos? Quem é você? - Ele respirou fundo.
- Eu me chamo Adam e você está na minha casa.
- Isso eu imaginei. Mas onde?
- Realmente não sabe? - Neguei mais uma vez. - Esta é uma praia particular em Malibu. - Ergui uma sobrancelha. - Lembrou de alguma coisa? - Neguei.
- Não. Acho que é uma espécie de sensação. Como algo me dizendo que nunca estive neste lugar. - Passei as mãos no rosto e suspirei. - Muito obrigada por me ajudar.
- Tudo bem. Agora se alimente e beba bastante líquido. Você está um pouco desidratada.
- Por quanto tempo estive inconsciente?
- Esteve dormindo por 48h. - Arregalei os olhos e ele sorriu. - Perder a memória depois de um acidente como esse é normal. Você deve ter batido a cabeça em algum lugar, mas logo vai recuperar a memória. - Adam se levantou e se afastou. - Por enquanto, vou te chamar de Jane. Tudo bem?
- Jane doe - sussurrei.
- Isso. Sinto muito.
- Tudo bem. - Tentei sorrir, mas soube que foi uma tentativa inútil quando vi a expressão dele.
Adam cuidou de mim, trocando os curativos, me alimentando, me ajudando a me mover. Primeiro na cama, até que tive condições de me levantar e depois de dar as primeiras passadas desde o acidente. Dias se passaram e se tornaram meses.
Então o inevitável aconteceu. Nós nos envolvemos em uma paixão tórrida, nos entregando ao desejo latente que urgia entre nós, nossos corpos pedindo um ao outro. Foi selvagem, intenso, insano, devastador.
- Por quê? - Olho para ele voltando das lembranças recentes.
- Há três anos, em um banco, em um final de tarde de uma sexta-feira, um homem e um pequeno garoto. Ele gritava, exigindo seu amiguinho inseparável. Um macaco de pelúcia que era seu animal de apoio.
- Não!
- Três anos, Adam. Transformei-me em outra pessoa. Matei todos os seus parceiros, mas foi você quem puxou o gatilho. "Uma bala, dois coelhos." Lembra disso?
- Uma bala, dois coelhos - ele repete.
Foi o que ele disse depois de matar meu marido e meu filho de sete anos com apenas um tiro de fuzil que atravessou os crânios dos dois.
- O menino não parava de gritar.
- Ele era autista e o macaco George era a única coisa que o acalmava.
- Ele não parava de gritar - ele segue repetindo. - Você se apaixonou por mim. Eu sei. Quando estava sem memória... - Solto uma gargalhada sinistra.
- Fofo que ainda acredite que eu realmente tive amnésia.
- Você se apaixonou!
- Adeus, Adam! - Puxo o gatilho e fim. - Uma bala na cabeça, um coelho.
Caio de joelhos, o coração batendo na garganta. Eu perdi a memória e me apaixonei pelo assassino do meu filho e do amor da minha vida. Sorrio enquanto uma lágrima escorre pela minha pele fria, erguendo a mão com a pistola.
- Duas balas, dois coelhos - digo, apoio a pistola no céu da boca e puxo o gatilho.

(Esse conto não pode se classificar, por tanto não participará da votação.)

Motivo: O escritor desse conto deixou o projeto.

Amor Impossível - Concurso Literário Onde histórias criam vida. Descubra agora