It was no accident

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O zumbido do gravador ecoava rouco no quarto escuro, mal iluminado pelo único abajur fraco, Vessel deitado na cama cantarolava a melodia que havia surgido no meio dos seus pensamentos ainda nada sonolentos e ele não podia permitir que essa ideia partisse, ela parecia particularmente boa. Ensaiou alguma letra por cima, algumas palavras soltas, mas mais tarde ele testaria algumas composições mais firmes que pudessem encaixar naquele ritmo, as anotaria em seu caderno junto com tantas outras que aguardavam alguma resolução, mas por hora apenas a consonância se fazia presente com alguma certeza, ela parecia invoca-lo, o transportava para outro universo e era nisso que queria focar, na imensidão que esses versos queriam alcançar. Que tipo de canção esses compassos se tornariam? Será que Sleep aprovaria sua nova oferenda? Vessel tinha certeza que sim. Conhecia os gostos de seu criador, sabia o que Sleep desejava ao agraciá-lo com tais inspirações. Desde o primeiro dia em que o chamou, desde a primeira vez que clamou por sua voz e foi livrado de todo pecado, Sleep se tornara sua eterna fonte de inspiração, fosse sobre amor, sobre dor, sobre magnitude, fosse sua fé inabalável, seu dogma enraizado em sua carne, em suas vísceras, em suas entranhas. Sleep sempre fora tudo e lhe dera tudo. Antes dele, era apenas a escuridão brutal. Não havia vida, não havia morte, não havia nada.

Em um breve suspiro, desligou o gravador que ainda girava lentamente com um toque, gostava de ainda usar um analógico, mesmo tendo sempre um celular à mão e o usando eventualmente, mas a tecnologia antiga tinha seu charme, parecia mais viva, mais quente, mais sensível e estava sempre disponível na cabeceira de sua cama, onde praticamente todas as canções surgiam, onde cada frase e cadência vinha a ele, onde ele se fazia um com Sleep e toda sua Palavra. Não havia adoração que não passasse por sua cama, pela luz amarelada do abajur.

Espreguiçou-se, sentindo o ar gélido que invadia pela janela entreaberta, o peito despido, os pelos eriçados. Ele precisava dormir, o dia seguinte seria longo e intenso, ele sabia, e talvez fosse exatamente esse o motivo de sua ocasional insônia. Pensou na última conversa com Sleep, aquilo o havia pego de surpresa e se era da vontade de seu Senhor, ele sequer poderia cogitar em discutir, a decisão havia sido tomada, mesmo que isso fosse mudar tudo na vida dos três receptáculos.

Não, não mais três, mas quatro.

Uma quarta entidade passaria a se abrigar sob aquele teto, uma da qual nada sabiam, nome, personalidade, jeitos, trejeitos, apenas que seria o responsável pela base, pelo baixo, ecoando grave em uma harmonia indescritível, transcendental, ou ao menos é o que Vessel imaginava, pela insistência daquele Ser em trazê-lo agora, quando eles já haviam provado que eram suficientes, mas segundo Sleep, algo ainda faltava, algo que só se completaria com aquele homem, quem quer que ele viesse a ser.

Vessel buscou por um livro que havia iniciado dias atrás, jogou-se sobre a cama, tentando lembrar sobre o que se tratava, mas bastou que lesse algumas poucas frases para perceber que precisava relê-las antes mesmo de chegar ao fim da página. Não, sua atenção não estava ali, sua mente vagava solta, imaginando mil criaturas forâneas, de todos os tipos, todas as formas. Quem ele seria? Como ele seria? Se dariam bem logo de cara ou precisariam de um tempo? Como seria sua convivência com II e IV?

Não adiantava, quanto mais permanecia ali, mais o sono partia por caminhos inexatos.

Se fosse uma noite qualquer, ele buscaria refúgio no quarto de II, tão próximo ao seu, debaixo das cobertas, onde sempre encontrava espaço, companhia e um ouvido atento às suas angústias. Nunca temeu revelá-las ao amigo. Mas desta vez, não fazia sentido perturbá-lo, roubando-lhe também o sono com um problema que nem existia. Não, desta vez, ele estaria sozinho, torcendo para que o cansaço o vencesse antes dos primeiros raios de sol. Precisaria estar apresentável ao amanhecer, seu corpo tingido por completo da mais pura noite, uma tarefa que exigia tempo, esforço, atenção. Seu corpo era um templo, refletindo todo seu ardor, devoção e idolatria. Tão importante quanto sua voz, ele era o próprio brasão daquele que servia. Ele era a marca mais orgulhosa de Sleep e deveria representá-lo com igual fervor.

Também precisaria garantir que II e IV estivessem impecavelmente arrumados, com tudo no lugar. Aquilo seria um evento tão sagrado quanto qualquer ritual, e nada poderia dar errado, mesmo que não saíssem de casa. Desta vez, sua plateia seria apenas um único homem; devotariam-se a um só olhar.

Levou-se horas até que se rendesse, após rolar incessantemente de um lado para o outro, abandonando a esperança de que Morfeu o viesse buscar como prometido. Com um suspiro resignado, jogou os pés para fora da cama, tateando no escuro até encontrar o casaco pendurado, que suavizaria a brisa fria da madrugada. Descalço, arrastou-se para fora do quarto, e antes de alcançar a cozinha, viu a luz acesa; aparentemente, ele não era o único a navegar por uma noite inquieta.

-Bem vindo ao grupo, Ves- disse II erguendo um copo de água em um brinde, enquanto IV estava sentado sobre a ilha no meio do cômodo.

Vessel tomou o copo de II para si e bebeu seu conteúdo de uma só vez, já o enchendo novamente. De repente, sua boca parecia seca demais, de repente, sentia que podia se quebrar ao menor dos toques. De repente, sentiu-se frágil e desamparado.

O silêncio dominou o ambiente por alguns minutos, enquanto olhares se cruzavam, e bocas se entreabriam sem emitir som algum. Todos compreendiam que pouco havia a ser dito sobre aquilo; seria o que deveria ser. Nada mudaria entre eles, mesmo que tudo estivesse prestes a se transformar naquela casa.

-Como será que ele é?- perguntou IV quebrando a calmaria forçada, encarando o teto, balançando seus pés no ar, fingindo não se importar.

-Sei que ele será o que nos falta, o que quer que isso seja.

-Espero que ele cozinhe bem. É isso que nos falta.

Vessel não pode evitar rir no comentário simples de II, que mesmo sendo bobo, provava que já estava disposto a aceitar aquele ser que conheceriam no dia seguinte.

Um novo membro. A ideia assustava a todos, mesmo que não demonstrassem. Quantos anos haviam sido apenas eles três? Tinham suas funções bem definidas, seja nas rotinas diárias, seja nas adorações sagradas. Cada um fora escolhido a dedo por seu Deus, cada um uma peça perfeita de um complexo quebra-cabeça. E agora, descobriam que ainda havia um espaço vazio, um espaço que nenhum deles poderia preencher sozinho. Essa nova presença, desconhecida e enigmática, prometia desestabilizar e ao mesmo tempo completar o equilíbrio do grupo, desafiando-os a aceitar que o quebra-cabeça divino ainda não estava completo.

Faltava algo.

Faltava alguém.

Faltava Alguém.

-Querem dormir na sala?

-Com certeza quero, Ivy!

Em poucos minutos, organizaram uma grande cama no chão entre os sofás, transformando o espaço em um ninho morno e convidativo, familiar e acolhedor. Ali, encolheram-se juntos, expostos e confiantes, em uma intimidade que só existia entre eles. Pensamentos vagavam sobre como seria a partir de agora. Ainda teriam noites na sala? Poderiam falar abertamente sobre qualquer coisa? Teriam liberdade dentro do próprio espaço?

Tudo era especulação, mas a inquietude os impedia de silenciar. Mesmo que os mandamentos pedissem contenção, atravessaram a madrugada em discussões fervorosas sobre o novo receptáculo: sua personalidade, sua aparência, seu som. Imaginavam como essa nova presença alteraria a dinâmica sagrada, cada um projetando suas esperanças e receios no desconhecido, enquanto a noite se desdobrava em possibilidades místicas e profundas.

E por mais que houvessem colocado tudo para fora, uma série de possibilidades, devaneios, nenhum deles sequer chegou perto.

Pois ao contrário de cada um daqueles pensamentos, ele era real.

Aquele homem era dolorosamente real, tão vivo e intenso quanto um incêndio descontrolado. Ele não era apenas um rapaz; ele era chama, fogo, e calor, uma força elemental que balançou o mundo de cada um deles. Sua presença incendiou suas almas, iluminando cantos escuros e revelando segredos ocultos. Trouxe consigo uma energia avassaladora, um brilho que transformava tudo ao seu redor, como se a própria essência do universo tivesse se concentrado nele. Ele era a centelha divina que faltava, a peça que completava o quebra-cabeça sagrado, desafiando-os a abraçar o novo com a mesma fé ardente que os unia desde o princípio.

Eles nunca mais voltariam a ser quem eram.

Esse era ele.

Esse era III.

The Apparition (Sleep Token)Onde histórias criam vida. Descubra agora