Most days you reach for safety

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Quando III finalmente abriu os olhos, sentiu seu corpo querendo partir-se em um sem número de pequenas partes, queimava dolorido, como se seus membros tivessem sido arrancados e costurados novamente sem nenhum cuidado, sua carne flamejando e a cabeça prestes a explodir. Levou um tempo para perceber que estava em seu quarto, em sua cama macia, sob seus próprios cobertores e não sozinho, II dormia tranquilo ao seu lado em uma poltrona que não lhe pertencia, mas que parecia ter sido trazida para ali, o celular em mãos, a boca entreaberta sob a máscara, ressoando suavemente. Ele claramente adormeceu sem intenção, sendo levado por um cansaço que se prolongava. Quanto tempo havia passado? Um dia? Um mês?

Ainda que seu corpo reclamasse piamente com o ato, III jogou as pernas para fora da cama, tentando evitar qualquer barulho que pudesse acordar o companheiro dorminhoco. Espiou o relógio com ponteiros luminosos sobre a cabeceira, 6h da manhã. O que havia acontecido? Ele se lembrava de estar saindo do palco, de ver todos indo em direção a Vessel e então o escuro total. Nada mais entre aquele momento e agora, nada além da vastidão do vazio interminável e o ecoar do universo em expansão.

Com todo cuidado que não lhe era comum, ele abriu a porta e desceu as escadas ao fim do corredor. Agora à luz clara da manhã que invadia as janelas timidamente, ele percebia que seu corpo ainda estava pintado, as roupas eram as mesmas da adoração, apenas sua máscara havia sido retirada, ele não fora tocado de nenhuma outra forma nesse período apagado e ele agradecia profundamente por isso. Sentiu-se respeitado e amado. Sentiu-se válido e relevante.

Ao chegar na cozinha, viu alguém se movimentando entre o balcão e a ilha, preparando algumas xícaras de chá, enquanto esperava a chaleira ferver a água, dançando levemente ao som de alguma música baixa que cantarolava em um velho rádio sobre a geladeira.

E esse alguém dançava sem máscara.

-Olha quem finalmente acordou! Como você está se sentindo? Estavamos preocupados, cara!

II estava no quarto e aquele ser não era tão alto quanto Vessel.

-IV?

O rapaz deu um sorriso, buscando mais uma caneca, enchendo-a com as demais, fazendo o invólucro do chá boiar lentamente na água que quase atingia a borda.

-Eu diria que o único, mas sabemos que não é verdade. Onde está o II? Ele deveria estar de olho em você- disse ele estendo uma caneca para o outro.

-Ele acabou cochilando- respondeu tomando um gole do chá quente, deixando que também esquentasse suas mãos na cerâmica aquecida, seu rosto tomado pelo fino vapor- Cuidaram de mim a madrugada toda?

-Sim, nos revezamos, foi um baita susto, quase que o Vessel surta de vez, mas fico feliz que esteja melhor.

Ele sentou-se diante de III, com a ilha entre eles, bebendo da própria caneca, os olhos pousados no ruivo com genuína preocupação, como se ele pudesse desmaiar novamente a qualquer momento, como se pudesse não sustentar o próprio peso.

-Eu.. eu não sei o que houve... uma hora estava ali e então...

Novamente, um risinho gentil.

-Relaxa, aconteceu comigo também, sabe, na minha primeira vez. Receber Sleep não é algo simples, nem fácil. Você foi muito bem, aguentou firme até o final, deveria se orgulhar! Eu despenquei no meio do palco!

O rapaz assentiu, deixando sua mente vagar por aquelas palavras. Sim, havia sido a energia de Sleep que o havia atravessado como uma lâmina em brasas, mas mais do que isso, havia sido também Vessel e sua fúria incontrolável, seu fervor, sua paixão. Naquele momento, desde o primeiro acorde, ele se conectara ao vocalista e aos outros, suas vidas se fundindo, passado, presente e futuro, entrelaçados como um, envolvidos em um só ser, uma quimera, mesmo em quatro corpos distintos, quatros almas mergulhando em uma só entidade antiga e bela e Vessel fazendo as honras, os guiando por aquele turbilhão desenfreado, cheio de cor, cheio de som, sufocante, apertado, claustrofóbico e III se agarrou a ele para não mergulhar rumo ao abismo profundo, ele viu as memórias de Vessel e não se viu nelas, aquilo o estremeceu, mas ele seguiu, preso àquela presença a tanto conhecida, abraçando-o por completo, confiando a ele sua vida, sua sanidade, seu sangue e suas vísceras, deixando seu corpo totalmente a sua mercê, deixando aquela divindade ancestral tocar por seus dedos, suas pernas, dançando em um ritual intrínseco, xamanístico, devoto e quando por fim sentiu Vessel recolhendo seus tentáculos espirituais e levando a consciência de Sleep consigo, ele sentiu-se vazio, assustadoramente vazio, desolado, incompleto, menos do que jamais havia se sentido e isso foi o suficiente para fazer III entrar em parafuso. Ele era menos que uma poeira diante de uma estrela, ele era a menor das partículas, das unidades, das moléculas, ele era o menor dos sopros, a última das existências, ele era escuridão e frio, ele era o Nada e nada mais.

-Isso passa um dia, IV?

-Não, mas você se acostuma e depois de um tempo você percebe que não pode mais viver sem isso, passa a fazer parte de quem você é. Mas se quiser, converse com Sleep, deixe claro como se sente, temos um altar lá em cima, ofereça algo. Quando foi a última vez que se ajoelhou?

III parou em meio a um gole. Desde que chegara, não havia rezado ao seu Deus no altar, não havia oferecido sequer suas palavras. Havia se concentrado tanto em Vessel que esquecera o principal.

A sua fé.

-Tudo bem, podemos comprar algumas frutas frescas e você pode tentar levar elas como oferenda, ele costuma gostar, ao menos conosco. Flores também são bem vindas, bem, vai do seu coração e da sua criatividade. II as vezes leva ossinhos que encontra.

-Não seria melhor sangue...?

-Apenas se você estiver enrascado. Você está, bassy?

Sem estar preparado, III sentiu alguém bagunçar seus cabelos já rebelder, passando por ele e indo sentar-se ao lado de IV.

-Bom dia, Vess! Olha só quem já está novinho em folha!

Os olhos do receptáculo principal brilhavam, como se finalmente pudessem alcançar a paz ao ver o outro bem e acordado.

-Vejo que II dormiu no posto, não é? Espero que essa primeira experiência não tenha lhe assustado, III. Nós ainda precisamos de você, Bassyboy.

Com um suspiro envergonhado, desviando o olhar, respondeu baixo.

-Sou fiel ao meu Deus. Se ele me escolheu e ainda me quer, eu fico onde tenho que ficar.

O restante daquele momento se passou leve, com Vessel e IV conversando sobre o ritual, sobre alguns ajustes e sobre as compras que precisavam fazer e com mais uma xícara de chá, Vessel partiu para seu quarto mais uma vez, afim de tentar terminar mais uma música que logo gostaria de trazer para os ensaios e III desconfiou que era a mesma que o vira compor a alguns dias atrás.

-Vou chamar o II para um café da manhã decente- começou IV, levantando-se- Você pode fritar algumas omeletes para mim? Já volto para te ajudar.

-Ei, Ivy... Obrigado...

IV congelou por um segundo, mas ele não precisava perguntar o motivo daquele repentino agradecimento, era tão claro quanto o céu azul daquele dia, então apenas sorriu, aquele sorriso que III já entendera que seria capaz de tranquilizar a qualquer um, um sorriso tão doce quanto poderoso, um sorriso pelo qual III percebeu que faria muitas coisas apenas para que ele existisse e quando se viu sozinho naquela cozinha já banhada pelo sol primaveril, ele sentiu que apesar do choque da noite, apesar da tristeza ao se ver excluído da mente de Vessel, ele havia ganhado algo, havia moldado um vínculo, mesmo que ainda frágil, com aquele homem sorridente, um elo que soava em sua mente, como cócegas, como um leve beliscar, deixando-o ciente que, mesmo que estivesse totalmente fora da sua vista, ele ainda estava ali, com ele e estava feliz, pois aquela conexão vibrava felicidade, provavelmente por ver II acordar e como não sentir os próprios lábios se curvando em uma alegria genuína? Por alguns instantes ele se deixou sentir o que IV sentia, mesmo que fosse apenas um vislumbre emocional escorrendo levemente por ele, tão fraco, mas tão significativo.

Indo até a geladeira, aumentou o volume do rádio, abrindo a porta abaixo, pegando os ovos, pimentões, queijo e uma variedade de tudo que fosse colorido que pudesse enxergar. Enquanto cortava os ingredientes, deixou a música fluir por seus membros, mesmo que seus músculos reclamassem, mais tarde tomaria um remédio, sua cabeça ainda latejava, mas agora a única coisa que lhe importava era aquela faísca que florescia dentro dele. Será que todos os outros tinham esse vínculo? Podiam sentir um ao outro? Aquilo parecia lindo, surreal, mesmo que assustador. Era possível controlar? Manipular o que vazava naquela conexão? Se fechar? Eram tantas perguntas, mas agora ele tinha uma tarefa, uma tarefa passada por IV, aquele IV que havia, em um gesto de confiança, lhe oferecido seu bem precioso, sua própria face, sua identidade, seu eu real, seus olhos e seu sorriso, suas covinhas e suas sardas, havia oferecido muito mais do que apenas pele e ossos, havia entregado a si como um todo, se entregado a um irmão, confiando em ser recebido, deixando sua mente tocar a do outro, com a segurança de que seria bem recebido. E com um estalo, ele percebeu. Foi durante a adoração, a ligação surgiu durante a adoração, quando se fizeram um, quando se fizeram sagrado, aquele vínculo era um resquício daquele momento, o que só podia significar que os outros também estavam lá, apenas optaram por não abrir seus canais, como estações de rádio mal sintonizadas, mas agora ele entendia, agora ele realmente fazia parte daquela família. A adoração fora seu batizado e ele fora aceito.

Apesar da noite tensa e da dor que ainda o estremecia, III explodia em felicidade.

The Apparition (Sleep Token)Onde histórias criam vida. Descubra agora