Atrás do altar, os quatro já ouviam o burburinho dos fieis que os aguardavam quase impacientes por aquele espetáculo banhado em fé e consagração, o pânico de III crescendo a cada segundo que se arrastava. Ele andava de um lado para o outro com o baixo firme em suas mãos, se agarrando a ele, mergulhado fundo em si mesmo, tentando não ouvir aquelas vozes desordenadas e quando II lhe tocou o ombro, sobressaltou-se, desconectado com o mundo terreno.
-Ei, III, estamos aqui com você, ok? E o IV e o Ves vão cuidar de você no palco, não precisa se preocupar.- disse quase em um sussurro, perto de seu rosto, tentando tranquiliza-lo em um meio abraço.- E se quiser, pode vir do meu lado e ficar até se sentir confortável para descer.
III quase hiperventilava, pensando em como respiraria com a máscara nesse estado, aceitando o carinho protetor de II, se encolhendo no homem que era tão menor do que ele, mas agora parecia gigante, um irmão mais velho fazendo seu papel com maestria.
Quando sentiu que seus pulmões se acalmavam, inflando em um ritmo próprio e as mariposas pararam de querer fugir por sua garganta, ele se afastou do companheiro com um suspiro e para sua surpresa, IV se aproximou, com sua máscara em mãos, colocando-a com delicadeza na cabeça de III, ajeitando seus cabelos cacheados sob o tecido, cuidando para que nenhuma mecha vermelha escapasse e deixando um carinho em seu rosto, antes de dar um passo para trás e admirar o próprio trabalho, sorrindo por baixo da própria máscara já posta.
-Uma boneca.
Vessel os observava de um canto, terminando seus preparativos, sentindo-se feliz pela proximidade dos rapazes. III iria precisar de todo apoio possível, especialmente quando pisassem no palco e o ritual começasse, quando Vessel abriria caminho para aquela divindade ancestral usando seu próprio corpo, seu próprio espírito, sua própria voz e arrastaria aqueles homens consigo, tentaria ser tranquilo, mas sabia que ainda assim poderia ser turbulento como uma tempestade em alto mar, daquelas que não se tem para onde fugir. Vessel seria a ancora, mas isso não impediria as grandes ondas vorazes de tentarem devorar tudo que pudessem enxarcar.
Em alguns minutos que pareceram eternos, um acólito os chamou e era hora.
Um a um, sairam das coxias, primeiro II, depois III, seguido por IV, incentivando o maior com uns tapinhas nas costas. Vessel fechou o cortejo, se colocando diante do pedestal previamente preparado por ele.
De uma só vez, como uma só unidade, parecia que cada ser vivo prendia a respiração naquele espaço lotado, seria possível ouvir uma agulha tocando o chão, mas talvez o único som presente fosse as fortes batidas do coração de Vessel, que espancavam seu peito, em um frenesi descontrolado, seu sangue borbulhando em suas veias, sua visão embaçada pelas lágrimas que já surgiam, apertadas, escorrendo-lhe e sendo absorvidas pelo tecido que protegia seu rosto da máscara fria. Ele sentia em sua carne, Sleep estava chegando e o exigiria, o teria, faria dele seu, faria dele seu mais precioso receptáculo, seu mais poderoso farol.
Ele tremia, suas mãos hesitantes em indo em direção ao microfone, incertos em sua própria certeza, quando então os primeiros acordes começaram a vibrar no ar que agora parecia rarefeito e Vessel, em um último surto de consciência, torcia para ouvir a entrada do baixo, pois temia que III recuasse e sabia o que Sleep faria com ele, mas no momento perfeito, as notas graves se misturaram à harmonia e ele pode enfim cantar, sua voz derramando-se naquele público e pouco a pouco a ligação com os seus amados receptáculos se formando, como tentáculos pegajosos e quando tocou III com toda suavidade que conseguia despender, foi um choque quântico para ele, uma colisão de universos, a explosão de uma supernova. III era, como já era esperado, fervente, caótico, irriquieto, mas muito mais que isso, ele era um furacão desgovernado, ele era a doença e a cura, o mestre e o servo, ele era antítese, ele era o éter e era as chamas, ele era o carvão. Se já não tivesse entoando aquela canção milhares de vezes, talvez tivesse se perdido entre as palavras, pois agora ele se sentia uma bruxa em meio as fogueiras de purificação, a energia daquele homem brilhava através daquela conexão, o atraindo como um inseto alado em uma pira funerária pronta para lambe-lhe a pele exposta, a qual ele estava tentado a permitir. Não pode evitar deixar seu olhar repousar em III, que também o olhava com algumas caretas, não de dor, mas de um leve incomodo, o que era um bom sinal, ele estava lidando bem, suportando e abrindo espaço para ele, quase o convidando para invadi-lo, mesmo que Vessel ainda pudesse sentir o receio velado, alguns olhares de surpresa e o cansaço que se espalhava por ele, como um incêndio furioso exigindo seu combustível. A comunhão com Sleep tinha seu preço e estava sendo cobrado. IV interagia com ele, deixando-o mais a vontade, permitindo que ele se apoiasse nele em vários momentos, falando em seu ouvido que poderia sentar nas caixas de som, até mesmo no chão, ninguém ligaria, seria apenas mais um excentricidade de um excêntrico, mas III tentava dar tudo de si, sentindo seu Deus querendo toma-lo para si através de Vessel, ele pulava, gritava, girava, ele se entregava por completo e não passava despercebido. Olhos de repreensão pipocaram na multidão.
Mas algo chamava ainda mais a atenção do vocalista, algo além do inferno desperto e violento que se inflava dentro do outro homem.
O toque não era desconhecido. Pelo contrário, tocar III era familiar em um nível absurdo e quando ouvia a voz dele em sua mente, parecia um velho amante recitando poesias, buscando devoção e Vessel sabia, não existiam mentiras naquelas conexões, elas eram puras, claras, viscerais, não existia segredo entre os receptáculos, não em níveis sentimentais ou emocionais. Naquele segundo ele acreditou em cada palavra de III, naquele segundo ele quis correr em direção ao homem vermelho sangue, naquele segundo ele quis decifra-lo como um quebra cabeça cósmico em suas mãos, as peças dispostas todas à sua frente. Ele sentiu a angústia do outro por não ser reconhecido, mas também a alegria em revê-lo, aquele sentimento era um abraço atrapalhado, desses que te derrubam no chão, mas te fazem rir, te fazem chorar, te fazem abraçar com ainda mais força, com medo que o mundo leve aquela pessoa. E aconteceu, algo levou Vessel daquele abraço, algo que ele não fazia ideia, que ele sequer imaginava que já houvesse existido. Ele sentiu falta, falta de um calor nunca sentido, de uma risada nunca ouvida, de olhos nunca vistos.
Quem ele havia sido? Quem eles haviam sido na vida um do outro? Eles haviam sido?
Ele realmente havia amado III? Pois agora ele sabia da certeza do amor do outro, mas não sabia sobre si e isso era tão irônico e ácido.
O cântico soava aos prantos daquele guia, a intensidade de seus sentimentos e descobertas cobrindo cada palavra proferida, a potência de seu espírito envolvendo cada adepto daquela ordem e quando a última linha da última canção se libertou braviamente por seus lábios negros, ele caiu de joelhos, Sleep martelando sua mente, exigindo que ele se reportasse, que ele o ouvisse, que ele o adorasse e idolatrasse, pois essa era sua função em cima do altar, sua única missão e ele estava falhando nela, deixando sua mente ser preenchida por outro rosto, outro cheiro, outra cor, tomando outro como sagrado.
Com o que lhe restava de força, ele se levantou, içando-se para fora, logo sendo cercado por IV e II, que sentiram uma parte de toda sua confusão, preocupados.
-Ves, o que aconteceu? Ves?
Mas ele não ouvia, seus ouvidos zumbiam alto, seu batimentos cardiacos explodindo neles, sua visão escurecendo, nublada.
-Onde está III?- perguntou percebendo que o maior não estava ali.
E só então perceberam.
III estava desmaiado no chão.
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The Apparition (Sleep Token)
Fiksi PenggemarUm novo membro chega e com ele, uma série de memórias perdidas. Quem Vessel foi? -Sleep Token boyxboy