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As coisas estão piores que antes. Constância, único nome a que posso me referir a minha vó, tem me penalizado com coisas além da limpeza e serviços na fazenda. Na verdade, hoje à noite, ela quer que eu me confesse a Deus, não através de um padre, mas através de meu avô. Cada pecado terá uma punição. Mas cometerei mais um peado. Não poderei dizer a verdade. Não existe perdão para alguém que se deita com um padre ou pior, com seu pai. Mas eu cometi tal pecado e nunca poderei confessar eles.

Deus está me testando, penso, limpando pela terceira vez o chão da cozinha. Aparentemente, da primeira vez ela o achou encardido. Na segunda vez, um odor estranho vinha dele. Vamos ver o que ela vai dizer na terceira limpeza.

Encaro a mulher prostrada próximo ao altar que montou a sua falecida mãe. Todos os das ela reza por ela. Provavelmente é a única pessoa que amou de verdade. Ela parece notar que eu a encaro, um olhar de esguelha julgador me açoita com a minha curiosidade. Calmamente ela caminha em direção a cozinha, inspecionando cada centímetro dos azulejos centenários. Ela não me parabeniza, apenas encara o relógio de pulso antes de dizer:

— Já são quase seis. Va se banhar para a confissão.

— Achei que seria depois de jantar...

— Hoje será mais cedo, temos um convidado.

Como ordenado, me encaminho para o banho. Atualmente, não vivo na casa principal como antes de fugir. Vivo na casa dos funcionários, que mal tem uma cama para cada. Divido com mais quatro mulheres um quarto pequeno. Ao todo, seus filhos contabilizam em cinco. O banheiro é nada além de uma lona que nos protege dos olhares curiosos. Não há chuveiro, apenas um balde que enchemos no pequeno açude aqui próximo. A agua congela meus ossos. Banho como se quisesse fugir da agua e volto batendo os dentes para o quarto. As minhas roupas não passam de sacos de estopa, cortados em pontos estratégicos para que passe minha cabeça e braços. Me visto em mais desses trajes vergonhosos e volto a casa principal.

O casarão está silencioso, como sempre. Cumprimento João que está sempre . A maioria dos funcionários está na cozinha aprontado a comida para o jantar. Como tem um convidado, deve ser feito mais comida. Nos, os funcionários amamos dias assim. Comemos os restos da casa principal, então quando vem alguém de fora, sobra mais para nós. Isso se não for ordenado que tudo vá para os porcos.

Caminho até a segunda sala, procurando por meus avos. E lá estão eles, acomodados cada um num sofá, o mais distante o possível um do outro. O primeiro a notar a minha presença é minha avó, que me olha enojada e reclama:

— Demorou...

— Eu tive que buscar água... — Tento me desculpar, mas ela me repreende.

Não precisou usar palavras, apenas levantou uma mão. Um sinal de impaciência.

— Vamos! — Diz, se levantando.

Meu avô tem a mesma ação. Os dois passam por mim, rumo a saída. Confusa, pergunto:

— Para onde?

— Para longe — Fala de forma evasiva. — Não queremos que os outros escutem...

Os sigo porta afora, me despedindo de João. Eles caminham até chegar no galpão fechado mais distante. Quase nunca é usado, tanto que está praticamente vazio. Tem apenas alguns moveis antigos, ferramentas e uma corrente despendurada localizada no meio.

Os dois me encaram, e meu avô diz a primeira coisa desde que cheguei na fazenda.

— Tire a roupa.

Gaguejo constrangida, não entendendo a situação. Após muita força, consigo murmurar um não. Meu avô caminha devagar até mim. Sua postura rígida. Seu semblante não oferece uma ideia do que está por vir. Mas imagino...

Meu avô nunca foi de usar palavras. Seu punho firme sempre falou por si. Desta vez, suas palavras foram um tapa espalmado em meu rosto, tão forte que me joga no chão. Apalpo a bochecha ardida e encaminho a mão rumo ao meu nariz quando sinto um liquido escorrer por ele. A mancha vermelha em meus dedos confirmam ser sangue.

— Nua, agora! — Ele grita.

Tremo diante de sua voz. Meu corpo oscila de medo, mas me forço a ficar de pé quando me lembro o que ele faz com os que desobedecem. Principalmente quando são mulheres.

De pé, continuo relutante em ficar nua. Lagrimas de medo e dor tomam conta dos meus olhos, mas me recuso. Qual a motivação. São meus avos, para que me querem nua? Não ficar nua, é o motivo de eu ter voltado. Aqui é o único lugar que não existe o pecado da carne. Mas depois de conviver com as funcionarias. Depois de dividir quarto com elas, de ouvir suas historias...

Até voltar, nunca tinha tido noção do que meus avos faziam.

Eu os imaginava como rígidos... me colocavam para trabalhar do amanhecer ao entardecer. Me puniam por meus erros. Mas hoje, confirmo as histórias que ouvi. Meus avos escravizam seus funcionários. Os espancam sem dó ou piedade.

— A roupa, Larissa... — Diz, e sei que aquela é a ultima vez.

Minha constante relutância o faz empunhar suas mãos em meus cabelos, causando dor absurda. Num solavanco, ele me puxa para o chão, me arrastando por ele até chegar as correntes que descem do topo. Ele desfere diversos tapas em minha face, até que meu ouvido fique abafado. Um dor agonizante toma conta de mim.

— Patrão — A voz de João preenche o galpão.

Meu avô paralisa, não por medo, mas por insatisfação. Ele solta me cabelo e passa a agarrar meu pescoço. Minha cabeça parece preste a explodir. Meus pulmões não sabem mais como funcionar.

Meu avô me suspende do chão e diz:

— O que, bastardo?

— Não faça isto... é sua neta — João fala. — Sangue do seu sangue — Ele continua tentando me salvar, mas sinto o apertão em meu pescoço cada vez mais forte. — Vai acabar se arrependendo!

Meu avô fica vermelho de ódio, mas apenas responde:

— Saia!

Os olhos de meu avô voltam a me encarar. Encarar a vida desvaindo de mim. Mas uma última vez, a voz de João ressoa:

— Senhor?

Todos o encaramos. Sua arma está apontada para meu avô. O dedo no gatilho demonstra não ter medo. E sua feição, diz querer isto a muito tempo.

Meu avô me arremessa no chão, me livrando de suas amarras. O ar volta para os meus pulmões como um alivio. Tusso descompassada, tentando voltar ao normal.

João ainda tem a arma apontada para seu patrão.

E meu avô continua descrente de que ele seja capaz. Ele retira a própria arma da cintura e aponta na direção de João.

João não atira.

Meu avô engatilha a arma, e João não atira, mesmo diante do perigo.

Meu avô conta até três, e João não atira. Por fim, meu avô pergunta:

— Não vai atirar?

João não responde, e de qualquer forma não teria tempo para tal. Meu avô disparou a arma. A bala acerta o ponto exato entre as duas sobrancelhas. É como se gritasse o costume que ele tem de fazer isto.

A Ninfeta do Interior - UM RECOMEÇO - 2Onde histórias criam vida. Descubra agora