Com o passar do tempo vamos nos esquecendo de quem perdemos, o cheiro, a voz e o rosto, as lembranças viram um borrão. A vida continua, mas o vazio no peito nunca vai ser preenchido, apesar de toda felicidade sempre irá haver uma mancha mesmo que pequena de uma dor incurável.
Meu humor constantemente se encontra sombrio como o meu coração. Ao segurar a flecha entre meus dedos, miro numa corça indefesa, depois de inspirar, expiro no momento em que solto a flecha, atingindo bem em seu crânio, o ruído da colisão se esvai pelo vento e o sangue dela mancha a neve da Floresta de Taiga. Arregaço minhas mangas e amarro o corpo do animal já sem vida no trenó.
Depois de longos minutos movendo o cadáver do animal, faço uma fogueira e o desmembro, e assim mato o que um dia já quase me matou, a fome. O que restou guardo para o dia seguinte e me recolho numa pequena estalagem. Hadrian me deu ordens de buscar uma encomenda para ele em Arcade, um reino vizinho a Olimpo.
Chega até ser engraçado lembrar que serei serva dele por toda a eternidade. Sou nova, completei recentemente três décadas, uma criança em relação ao milênio de Hadrian.
Pela posição do sol, percebo que já está na hora, pego minhas adagas e espadas, e as guardo no meu corpo, uma na bota a direita, outras duas em ambas as coxas e as duas espadas nas costas.
Estou coberta por um capuz preto e uma máscara cinza opaco. Busco investir em trajes confortáveis para facilitar a minha locomoção e possível fuga.
Aguardo pelo mensageiro, enquanto bebo um copo de uma cerveja barata que tem gosto de mijo e água. Ao ficar tanto tempo balançando a precária bebida na mão um macho se aproxima ao meu lado.
- Pelo jeito não está acostumada com bebidas baratas. -disse ele com um leve sorriso, sem evidenciar os dentes.
O ignoro, e continuo mexendo o líquido do meu copo. O macho alto e de aparência forte, estava como eu, adornado de tecidos pretos, por muitos aliás. E seu corpo se mexia numa graciosidade e autocontrole impressionante. Seu capuz preto esconde boa parte de seu rosto, sendo os seus lábios a única pista de que ele seria um belo macho.
- Vejo que seus pais não te ensinaram modos, não é mesmo? -disse ele.
- Se não quiser perder a língua, acho melhor se distanciar de mim. Não sou de dar segundas chances, a escolha é sua, vai querer arriscar? -digo apontando uma adaga a centímetros do seu pescoço.
- Então você tem língua? Reconheço uma ameaça quando a encontro. Faça bom proveito de sua estadia, Tempestade. - seu sorriso malicioso rompe com qualquer autocontrole que cultivei durante minhas décadas.
E antes que eu pudesse falar algo, ele some, como a escuridão se dissipa ao nascer do sol. Idiota. Estou cansada de tantos idiotas.
- Com licença, você é a encarregada de Hadrian? - disse uma pequena fada de aparência sobrecarregada, como se estivesse há dias voando sem parar.
- Sim, sou eu mesma. - Ela me avalia e logo depois me entrega uma pequena caixa de madeira, lacrada com magia proibida e manchada de sangue. O cheiro forte de magia atinge meu olfato feérico e revira o meu estômago.
Com um simples aceno de cabeça, me retiro para fora da estalagem. Monto em um cavalo de pelagem preta e olhos negros que comprei de um viajante endividado. Aproveitei para guardar o restante da carne na mochila.
A caixa era leve como uma pena e balançava no ritmo que o animal galopava pela floresta. Em média a viagem de volta ao Reino de Olimpo dura um dia e meio, mas preciso chegar o quanto antes, caso o contrário Odin me puniria pelo meu descaso em não comparecer ao seu treinamento e por deixar ele esperando. A sensação de passar o dia queimando e apagando uma fogueira, não parece ser muito divertido, ainda mais tendo que escutar Odin, catando e dançando com a sua sanfona ao redor dela. Deuses, eu não mereço isso.
Hadrian não me disse o que eu iria buscar e nem mesmo tive a curiosidade em perguntar, só sigo as ordens dele cegamente. Já se foi o tempo em que eu relutaria para saber a verdade, depois que entendi que a minha vida era devida a ele e que a dívida só acaba quando ele morrer ou eu morrer, prefiro dedicar o meu tempo arquitetando a sua morte.
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Chamas Flamejantes
Fantasi🔥Ela foi destruída e forjada em algo novo, mas não menos aterrorizante. Queimaria o mundo se fosse preciso para silenciar o seu desejo de vingança. Me diga de que modo você, caro leitor, se sentiria se tudo que amassasse fosse queimado até virar ci...