I: Negação.

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Menos de um mês havia se passado após o ocorrido na Residência Matos. Cassandra obviamente se escondeu atrás das câmeras e os poucos que tinham visto entrando na casa simplesmente, tiveram suas bocas caladas de alguma forma, nesse meio tempo que a mulher presta falsas condolências entre comerciais e em entrevistas, fingindo estar simpatizando com a tragédia de um assalto à mão armada seguida de um combate feroz que resultou na morte de Jeremias, Alice, Nicole Matos (Sim, Niko era só um apelido) e que resultou no desaparecimento de Kairós, segundo as notícias, o mais velho acabou sendo sequestrado como um refém, mas, outras informações fofocavam que o garoto foi encontrado morto junto com os restos do antigo carro da família próximo de uma cidade da Região dos Lagos.— Paz de Cristo. — Disse uma pessoa ao meu lado, retribui tocando gentilmente o ombro da idosa e repeti o dizer.Fazia muito tempo desde que entrava em uma igreja e participava de suas atividades, também tinha feito questão de pôr os nomes dos três em dedicatória pelas suas almas, mesmo sabendo que talvez Niko e Gwyn não estariam em um plano tão... acolhedor. Desde um tempo depois que tinha acordado dos cinco anos, percebi uma presença muito maior na Igreja Matriz de Porto Real, talvez pela real presença do sobrenatural assim como as formas do bem e do mal, meio que deu uma grande voz às vertentes religiosas. Era bom por um lado, afinal muitas pessoas estavam realmente se tornando melhores querendo uma chance de alcançar o Paraíso (Ou só a ilha de Santa Sofia, ainda era bastante confuso para mim.), mas pelo outro, era visível que os tradicionalistas radicais usavam aquilo para expressar seu veneno e tentar converter o máximo de pessoas possíveis para os seus nefastos planos. Os dias foram se passando enquanto me adaptava a fazer as coisas com um braço, afinal, o arcanjo já tinha assegurado que seria muito difícil que a mão direita fosse revitalizada então, só me conformei e estive tentando me adaptar a esta adversidade. A A.R.E.S foi o primeiro alvo após o ataque de Cassandra, o que forçou Virtua, Salem, Darwin e Alyssa saírem de Nova Atlântica e se refugiarem fora do Rio, com o pretexto de estar tentando se reerguer, uma boa notícia aos meus ouvidos já que não queria nenhum deles se arriscando em Porto Real ou então em Nova Atlântica. Enquanto os dias foram passando, consegui arranjar um novo emprego em uma loja de artigos "sobrenaturais" bem perto da casa de minha mãe, o que era até que suficiente para fazer mais umas economias, queria fazer algum curso universitário mas ainda não sabia qual. Ela mesma adorou a ideia de eu voltar a morar em Porto Real e praticamente ficou as duas semanas inteiras falando com o proprietário da casa ao lado negociando um aluguel poucos dias antes de viajar novamente com Hiroto para a terra do sol nascente, fiquei muito feliz pelos dois e bem, como aquilo meio que deixou a casa dela vazia, arquei com a responsabilidade de cuidar da casa enquanto eles viajavam, o que bem, evitava gastar mais dinheiro com o aluguel que ela tinha arranjado.— Jon, vejo que mais um dia está aqui conosco. — Ouço a voz de Helena, uma senhora de idade avançada que ajudava na igreja e uma antiga amiga da vovó. — Por acaso voltou para Porto Real de definitivo? — A mulher deu um sorriso meio torto, acontece que curiosamente, Helena era famosa por ser a fofoqueira do bairro então, nenhuma informação passava por ela sem que a velha soubesse.— É Dona Helena, as coisas ficaram muito difíceis lá em N.A. — Respondi.— Você era próximo dos Matos? Todo domingo vem aqui para prestar suas homenagens a eles, e sinceramente é o único que fez isto desde aquele dia.— Digamos que sim. — Encerrei a conversa, saíndo da igreja sem maiores explicações e dobrando à direita em direção de um outro Shopping tão grande quanto o Continental, o Shopping Vera Cruz.Estava indo para o complexo de lojas encontrar alguns novos amigos, na verdade, eles que insistiram que eu viesse para comemorar o meu aniversário, para um vampiro com certeza comemorar o aniversário não iria fazer sentido depois de um tempo, mas para mim, era uma data que simplesmente sabia que iria acontecer alguma coisa boa, então pelo menos tinha a esperança de que pudesse acontecer alguma coisa interessante.— Gael, tem alguma coisa se aproximando muito rápido. — Ouço a voz do Redentor. — Algo grande.Também senti alguma coisa se aproximando, não por presença, mas por um cheiro forte de enxofre, o objeto que seria grande era apenas um carro marcado como motorista de aplicativo, com o motorista sendo um Ukobach. Meus nervos demoraram para voltar ao normal, nos últimos dias os meus sentidos estavam em completa desordem, assim como meus próprios pensamentos. Por mais que eu estivesse em guerra com o Equinócio, desde aquele dia nada estranho acontecia ao meu redor, nenhum caso sobrenatural para resolver o que me deixava cada vez mais entediado ao mesmo tempo que apreensivo, andar na rua só pensando no destino era um pensamento que agora era impossível, isso sem contar as inúmeras noites em claro, caçar já não era prazeroso já que conseguir sangue era a coisa mais fácil levando em conta a autorização dos vampiros poderem usufruir de hemocentros e até mesmo pessoas e outras criaturas sencientes que se oferecem como doadores, pesadelos constantes envolvendo o cadáver de Niko em meus braços, a culpa de não ter tentado nada naqueles segundos finais.— Era só um carro, e nada mais. — Falo observando no horizonte, a rotatória que daria na rua principal que por sua vez, a subida daria no Shopping Vera Cruz.— Desculpe, ainda não estou acostumado com essa vivência tão diferente. — Reclamou Redentor.Queria dizer que estava tudo bem mas, não, nada estava bem. Enquanto subia a calçada e percorria o caminho final para o estabelecimento, sentia o meu coração arder em uma dor excruciante, aquilo não era a dor da fome mas sim, saudades. Saudades dos momentos que poderia ter vivido, saudades de meus devaneios e também de ouvir as vozes das amadas. O tempo também não estava lá essas coisas, o céu nublado deixava o nono dia do mês de dezembro bastante melancólico apesar da minha pequena animação pela comemoração do aniversário.— Jon! — Ouço outra voz familiar, na fachada do shopping e sinceramente, dei um sorriso um pouco mais tranquilo.Mig Angellus acena sinalizando que a voz era dela, a jovem era uma das clientes da Cabana Redonda, a loja que mencionei mais cedo. A andrógina sempre trajava vestimentas escuras de uma delicada seda na parte superior do corpo consistentes de uma blusa listrada e acima dela uma camisa escura com algumas constelações desenhadas, jeans azul claro rasgados e saltos plataforma em tom de couro negro. Mig tinha feições delicadas que davam a entender que a garota era muitos anos mais nova do que realmente tinha, os olhos de cor rosa choque, dava algum efeito estranho como se quisesse minha atenção a todo tempo, descobri que Mig na verdade replicava o poder sedutor de uma Súcubo depois de um pequeno incidente na loja com um outro cliente insatisfeito e apesar da origem demoníaca, era uma ótima companhia e uma boa amiga. Os cabelos cacheados castanhos davam contraste com sua pele em tons claros de cacau enquanto as luzes da fachada atingiam seu corpo em alguns pontos, dando-lhe um efeito de exibição um tanto exagerado.— Oi Mig, eu atrasei demais? — A questiono um tanto sem graça.— Não, você até que chegou bem rápido, os outros ainda estão no engarrafamento de Nova Atlântica para cá, aparentemente deu algum acidente feio com um monstro marinho próximo a Baía. — Explicou a garota. — Mas fica tranquilo, você não vai ficar andando sozinho todo xoxo capenga pois eu estou aqui! — Ela exibe um sorriso mostrando a dentição pontiaguda junto de uma pose esticando os braços para a esquerda, quase fazendo um "dab".O Ofanim aquecia um pouco querendo mais uma vez exibir seus poderes celestes com a simples presença de Mig no recinto, mas, isso acontecia com praticamente todo ser sobrenatural que pudesse ser algum tipo de ameaça, logo, não me importei. Não passou muito tempo para que já estivéssemos andando pelos largos corredores lotados de lojas e pessoas apenas matando tempo até alguém confirmar que estava vindo.— Eles não virão né? — Mig pareceu extremamente chateada. — Olha eu odeio de verdade quando esse tipo de coisa acontece. — Não queria que um amigo passasse o aniversário completamente sozinho.— Bem... eu não estou exatamente sozinho. — Balanço os ombros, desviando de uma criança centauro. — E eram os seus amigos.— Seus dois amigos de infância, os seus amigos anjos foram pra outro estado fugidos de não sei o que. A garota Matos foi de See You Again e aquela outra garota que você gostava simplesmente te abandonou por um compromisso que ela só tinha medo de dizer que não te queria. — Confesso que ela me fez fechar os punhos em irritação, que insensível! Mas, ela tinha um ponto. — E a sua mamãe está do outro lado do mundo.— Você quer parar de fuçar as minhas lembranças? Isso é muito irritante, mesmo. — Forcei um sorriso olhando diretamente nas íris de Mig enquanto as presas aparentavam estar mais longas que o normal, apesar de não incomodar em nada.— Ai, tá bom, a culpa não é minha se eu gosto de me alimentar de sofrimento e você ter mais memórias assim do que um álbum de sertanejo universitário. — Respondeu.Realmente os minutos se passaram horas e a noite já estava chegando enquanto, apenas nos sentamos em uma das saídas do Shopping Vera Cruz, conversando sobre qualquer assunto aleatório. Até que, no horizonte, observo uma figura muito familiar saindo de um dos carros, aquela era Gwyn?!— Pare de brincar com a sua própria cabeça, Jon. — Senti um tapa na nuca, me fazendo perder o foco visual e ao tentar ver novamente, era uma pessoa completamente diferente. — Desculpa, eu precisei fazer isso.— Está tudo bem, eu sei que ela não é real. — Retruco. — Eu às vezes me pergunto como diabos você consegue perceber quando estou a vendo.— Eu sou praticamente uma Súcubo, de sofrimento, ilusão e tortura mental eu já entendo a séculos... não literalmente. — Mig se levanta do banco apontando para as estrelas. — Quase fui me esquecendo, o seu presente!Mig fez um gesto para fechar os olhos, apenas correspondi com o ato, apenas para ouvir os passos apressados da garota correndo em direção do estacionamento, fingi manter os olhos fechados enquanto via ela pegando alguma coisa no jardim e correndo em minha direção novamente, sentando-se ao meu lado e exclamando.— Pode abrir!Mig segurava um trevo de quatro folhas.— É pra dar sorte! — Disse.Apanho o objeto, e com um sorriso agradeci o pequeno gesto que realmente mostrava que ela se importava.— Pode falar que foi o melhor presente que você recebeu em anos. — Sorriu exibindo mais uma vez os dentes pontiagudos.— Não mesmo. — Minha resposta foi devolvida na forma de um soco bem fraco no meu ombro. — O que, mentir é feio Mig.— Argh, me refutou. Mas, de repente o trevo realmente pode te trazer sorte. — Deu de ombros enquanto guardei o objeto dentro da carteira. — Tá afim de só vazar daqui e procurar alguma coisa para fazer?— Como por exemplo?— Bem, a gente pode ir ao espaço, lutar contra uma múmia ou escalar a Torre Eiffel inteira. — A garota se levantou, estendendo a mão para me ajudar.Um tempo adicional se passou enquanto saímos do Shopping e pelo menos, eu tinha a intenção de voltar pra casa, ligar a televisão e jogar alguma coisa até pegar no sono, o objetivo era esse até perceber que Mig estava me seguindo pelo caminho quase que inteiro.— O que você tá fazendo? — Levanto a sobrancelha.— Te acompanhando até a sua casa? — A súcubo cruzou os braços.— Vai logo pra casa guria, teus pais vão querer me matar se descobrir que você e eu estivemos perambulando por aí. — Acabei falando um pouco ríspido, o que resultou em um murmúrio dela. — Não me leve a mal mas, eu não quero que você se machuque. — Minto, eu só não queria que desse algum problema pro meu lado, felizmente aquele diálogo funcionou e com isto recebi um abraço apertado desta, que apenas saiu saltitando para o outro lado, provavelmente em direção da própria casa. — Se cuida.— Você também. — Gritou em despedida, voltando aos pulinhos constantes e desaparecendo em uma nuvem rosa choque.O meu objetivo era só voltar para casa, mas, ouvi um ruído estranho junto de um cheiro de enxofre... Uma presença demoníaca deveras familiar.— Um mês se passou e nenhuma evolução. — Ouço uma voz odiosa.— Um mês se passou e você não fez nenhum ataque. — Respondi. — Olá, ex-cunhado.Das sombras, uma figura se revelava à minha direita, trajando um sobretudo, os cabelos antes castanhos estavam brancos porém ainda era o herdeiro dos Matos, Kairós. O Ofanim estava esquentando enquanto as sombras do ambiente se curvam à Kairós como tentáculos se esticando a partir dos pés.— Porque? Eu ainda não consigo entender o motivo. — Mantive os olhos criando um contato visual com o jovem.— Um Cavaleiro deve ser fiel à sua Bruxa. — Kairós sacou sua arma, uma lâmina que parecia ser feita de madeira, os aspectos de adornos lembraram raízes e a lâmina remetia a uma folha de babosa. — Meu pai traiu a causa, nossa mãe tentou defendê-lo e a sua Bruxa estava tomando a direção errada, eu só libertei a minha irmã da sedução de vocês. Você faria o mesmo.Kairós tinha um ponto, minha intenção era realmente acabar com o Equinócio, por sua vez, iria ter que dar cabo das sete Bruxas. Não dei nenhuma resposta, com certeza mataria para a execução do plano.— O Cavaleiro da Gula já está morto, você é o da Luxúria e eu sou o da Inveja. — O jovem preparou sua postura. — Quando um Cavaleiro morre, a Bruxa simplesmente pode eleger outro. Sabe o que acontece quando rola justamente o contrário? O Cavaleiro enlouquece enquanto a bruxa destrói a sua mente em uma tentativa de retornar para um corpo. Gwyn não foi tão piedosa com minha irmã, e você vai sentir a influência dela a qualquer momento.Certo, ele tinha argumentos, ele tinha motivo. Respiro fundo sentindo o Ofanim esquentar, ele não tinha motivos para mentir, também sabia que mentiras não eram proferidas em suas palavras, do contrário o próprio anel iria sinalizar de alguma forma. Então o que deveria fazer? Entrar em um combate aberto? Ou simplesmente tentar afastar-me daquela possível ameaça.— Eu não queria ter feito o que fiz Gael, mas não me arrependo das consequências da traição de meu pai. Eu queria salvar todos eles.— Que belo desempenho você teve, agora os três estão mortos. — Cerrei os punhos, sentia o sangue circular cada vez mais rápido enquanto os batimentos cardíacos do nephilim aumentavam. Eu tinha atingido algum ponto fraco, quiçá.— Mas as suas almas estão seguras agora, pelo menos, Nicole e minha mãe conseguiram alcançar os Campos Abençoados. — Kairós ajeitou a gola do sobretudo ainda mantendo a lâmina na mão oposta, talvez aquilo fosse justamente para caso eu fosse atacá-lo repentinamente. — Quanto ao meu pai...— Jeremias sabia dos riscos, ele já era uma criatura infernal, já estava fadado a regressar aos confins da terra da danação eterna. — Cortei. — Assim como tenho conhecimento de que não vou ter um pós vida, e assim como você por ter se tornado o Cavaleiro de Cassandra, sabe que o seu destino é o mesmo de seu pai.— Servir a Cassandra foi um meio para justificar o bem e o descanso que elas iriam ter no final, por mim, foda-se o fato de eu pagar pelos meus crimes no Inferno, eu faria tudo novamente só para poder salvar as almas delas. Assim como você serviu ao amor que compartilhava com minha irmã e também pela Bruxa da Luxúria apenas pela vontade de mantê-las em segurança, que pudessem aproveitar suas estadias neste plano tão ordinário.— Pior é que você tem um ponto. E as vezes me questiono se realmente o que estava sentindo por elas foi amor ou simplesmente-— Uma atração por culpa de alguma deficiência emocional da sua parte ou algum encantamento da parte da Gwyn? Talvez seja. Ou você realmente amou ela e está reprimindo esse sentimento por conta do luto?— Eu só não sei como expressar isso, parece-— Falso demais? — Kairós levantou a sobrancelha.— Tem certeza de que você não está querendo fazer amizade comigo? — Acabei soltando uma risada.— Não mesmo, compartilhamos de muitas motivações, apenas tomamos caminhos diferentes, fico triste por realmente não ter se aliado de fato ao Equinócio.— Há um motivo para eu não ter feito isto. — Aquilo me deixou pensativo, tinha uma dúvida que talvez não fosse respondida. — Kairós, como foi o seu teste para o Equinócio?— Boa pergunta, eu não precisei fazer, Cassandra achou que seria útil que eu fizesse parte no exato momento em que meu pai e você começaram com o seu plano esdrúxulo.— Privilegiado.Nós dois gargalhamos, Kairós se aproximou guardando a espada, se pondo ao meu lado enquanto fazia um gesto que indicava que queria caminhar um pouco, aquela noite estava muito estranha, ainda mais se fosse considerar aquela conversa.— Eu vou indo, da próxima vez que nos vermos muito provavelmente vai ser uma batalha, e nós sabemos que a Cassandra vai querer que essa batalha seja gloriosa.— Você fez uma piada com um desenho? — Levanto a sobrancelha, duvidoso.— Aprendi com um certo alguém. — Respondeu.Kairós apenas riu e as sombras engoliram seu corpo, apenas para se dissipar no umbral, mais uma vez estava sozinho naquela rua, com poucas pessoas passando pois tinha um boteco ali perto. Continuei o caminho até minha casa, agora estava no chuveiro encarando a parede de azulejos com um semblante vazio, a água quente molhava meu corpo gelado ao ponto de criar uma névoa justamente pelo choque térmico, aquilo me doía mas nada comparado à saudades, aquilo parecia corroer a minha cabeça e estava começando a compreender o que Kairós tinha mencionado com a maldição, e se as visões de Gwyn não fosse apenas um reflexo de uma tentativa dela conseguir um novo corpo, mas ela tentaria fazer isso comigo sabendo o que pode acontecer? Segundo o irmão de Niko, com toda certeza.— Desculpe. — Ouço a voz de Gwyn.— O que?!Silêncio, fecho o chuveiro apenas para sair do box e me deparar com algo estranho no espelho, o reflexo da Bruxa da Luxúria ao meu lado. Bem, onde eu deveria estar, esqueço as vezes que não possuo mais um reflexo.— Não, você não é real.Nada apareceu naquele espelho embaçado, afinal, eu sou um vampiro. Olhando para baixo, pude perceber minhas vestes que ainda tinham sido o presente de Gwyn enquanto tinha uma certa frustração com as roupas negras como a noite. Como gostava daquele tipo de encantamento, acabei tentando replicar mas, o resultado não foi tão bom. Um pequeno acidente com meias que tentaram comer os meus pés. Quanto às visões no estacionamento e agora no banheiro, talvez fosse minha cabeça pregando peças, talvez uma maneira estranha de lidar com o luto. Agora, olhando para o teto do quarto, as costas repousadas no colchão e as pálpebras semicerradas foram meus últimos atos antes de encerrar aquela madrugada e provavelmente acordar daqui a algumas horas para mais um dia de trabalho.Fragmentos de visões correram por minha percepção, lembranças voltadas em uma dolorosa retrospectiva de minha vida, remontando meus antigos medos, traumas e até desejos não realizados, mas todas tinham um ponto em comum, o abandono. Não importava se eram memórias simples ou complexas, desde um abandono e carência parental até um abandono de antigas paixonites como Jennifer pela não correspondência de sentimentos e o abandono de Gwyn e Niko, através da morte. Segundo o próprio Kairós, Alice e Niko tinham alcançado os "Campos Sagrados", aquilo era uma referência direta com o Paraíso. Quanto à Gwyn, muito provavelmente estava presa no Purgatório, não fazia ideia alguma de como retornar para lá além do risco de acabar sendo confrontado pelos 7 demônios capitais de uma vez só.— Gael, nós te amamos. — Disse Niko. — Estamos bem, não se preocupe. — Completou Gwyn.Agora estava em Santa Sofia novamente, parecia reviver a lembrança. Porém daquela vez estava caminhando pelas ruas acompanhado por ambas, cada uma ao lado segurando meus braços, rindo com algo que dizia, queria tanto que aquilo fosse real, mas, no fundo, minha mente puxou aquela visão para um umbral repentino.Acordo em um solavanco, com os dizeres tanto da bruxa quanto da nephilim, sentia o cheiro de seus corpos mesclados por todo o quarto, um perfume agradável aos meus sentidos, era algo indescritível, porém era bom mesmo assim. O dia se seguiu como qualquer outro, acordando bem cedo, fazendo todas as atividades de um dia na Cabana Redonda e nenhuma alucinação, nenhum sinal, na verdade, passei o resto da semana inteira até tentando reviver tais lembranças, pedindo por orientações ao Seu Ricardo, o dono da loja, um senhorzinho bem simpático e que conhecia bastante sobre os campos do pós vida, mas nenhuma resposta. Tentei me comunicar com qualquer um dos sete arcanjos, apenas para receber uma resposta concreta do arcanjo Gabriel, dizendo que não só a Nephilim havia alcançado Santa Sofia junto de sua mãe assim como a bruxa da Luxúria, que decidiu para a minha surpresa, renascer e tentar ser um indivíduo melhor na próxima vida.— As duas da família Matos alcançaram o verdadeiro Éden enquanto a bruxa decidiu refazer os seus passos no mundo mortal, receio que nunca mais vá encontrá-la. — As palavras de Gabriel mostravam cautela, ele tinha conhecimento de meus sentimentos e respeitou até a minha dor. — Sinto muito por não ter aproveitado a vida que vocês mereciam. — Disse o arcanjo.— Não precisa se desculpar, pode pelo menos dizer para a Nicole que eu a amei desde o primeiro momento? E que gostaria de ter passado muito mais tempo. — Disse ao ser celeste, disfarçado como um entregador, pelo menos era deste modo que Seu Ricardo o via. — Esquece... elas já sabem disto.Kairós estava certo em uma coisa, a dor de perder alguém era como se aquela pessoa estivesse tentando tomar conta de sua sanidade, no fundo, aquilo não passou de uma conversa para me fazer ver que, elas já estavam em um lugar melhor e que deveríamos respeitar o seu descanso. Aquilo não ia me fazer desistir de querer destruir o Equinócio, pelo contrário, iria agir com mais vontade ainda, não mesmo que iria permitir que aquele culto infernal fosse responsável por arruinar mais vidas inocentes, o que me fazia voltar com um plano para melhorar as minhas habilidades tanto teóricas quanto as habilidades físicas.— Você planeja entrar na Universidade Vera Cruz? — Diz Ricardo, com um sorriso. — Sabe que é bem difícil entrar lá não, é.— É, eu sei mas... seria bom uma nova oportunidade para me formar em algo além de só um ensino médio, talvez até consiga um diploma em áreas que possam auxiliar diretamente os sobrenaturais como nós. — O duende esfregou as mãos e riu.— Sabe Gael, eu queria que meus filhos fossem mais como você, obstinados e que realmente correm atrás dos objetivos. Acho que deve começar a estudar desde já se quer algum crédito para o Curso de Caçadores de Vera Cruz.Concordo com um aceno de cabeça, estava na hora de fechar um livro com capítulos arrastados em melancolia, e começar mais uma história da minha vida. Uma vida bem mais tranquila sabendo que por mais que tenha perdido-as, Niko e Gwyn estavam adicionando mais um capítulo na história de suas existências. Ae Autor, se prepare, pois agora que deu o carai mesmo.A aparição de Kairós e nossa conversa serviu para uma coisa, aumentar a incidência de problemas que estavam acontecendo em Porto Real, as agências sobrenaturais tiveram conhecimento de uma criatura que estava vindo pelo mar, mas, as informações foram desmentidas por algumas notícias do canal 4, era óbvio que aquilo era parte das forças de Cassandra e com toda certeza, ela não ia por o dela na reta para explicar uma anomalia na Baía de Guanabara que resultou em um enorme acúmulo de lixo sendo enviados para os litorais, o que resultou na própria fazer outro comunicado na televisão.— Graças aos acidentes que tem acontecido em nossos litorais, nós da Rede Polvo vamos nos responsabilizar por ajudar nosso grandioso governo para despoluir completamente as nossas águas, primeiro começando pelo estado e depois, quem sabe vamos conseguir expandir para todo o país? — Sua voz me dava nos nervos, olhava para a tela perto do balcão da Cabana Redonda enquanto fazia a entrega de alguns produtos medicinais e herbicidas para os respectivos clientes.Depois da saída do pequeno grupo, organizei as notas na caixa registadora e virei-me de costas para organizar a prateleira atrás de mim, apenas para ouvir o sininho da porta tocar.— Olá, seja bem vindo à Cabana Redonda, deseja alguma coisa? — Mencionei ao terminar de ajeitar as coisas.— Olha só como o mundo é pequeno. — Uma voz familiar me despertou os sentidos.Virei rapidamente a tempo de encarar um diabrete mantendo um olhar fixo, de pé acima do vidro enquanto tinha feições raquíticas, como vestimentas fazia uso de um terno e uma boina que cobria parte do rosto, sem dúvidas aquele era Messi, o diabrete pastor.— Tá de sacanagem... O que você tá fazendo aqui?! Se eles desco-— Se acalme irmão Gael, ninguém sabe que estou aqui e muito menos dando assistência a um traidor do Equinócio. — O diabrete estalou os dedos e as cortinas junto da porta foram trancadas, para olhos desatentos poderia pensar que Messi tinha trancado o lugar com uma magia antiga, mas, meus reflexos notaram criaturinhas peludas, roedores que prontamente fizeram aquilo. — A bruxa da Inveja... você precisa deixar tudo e fugir agora mesmo, no exato momento em que conversamos, ela está junto da Bruxa da Ira, planejando maneiras de como vão te achar e... vão praticamente te executar em praça pública.— Mas isso faria o Equinócio mostrar os seus reais objetivos...— E você acha que aquela desviada se importa? Aquela atribulada não tem mais salvação. O Leviatã já tomou conta completamente de suas vontades! — Messi parecia extremamente preocupado, seus colegas, diferente dos corriqueiros colegas diabretes, eram... guaxinins com roupinhas diferentes. — Cassandra Marino não existe mais, apenas é uma casca para o Leviatã! Suas próprias irmãs já estão duvidando das atitudes dela.— Certo, tenho certeza de que sabe algum lugar interessante para me refugiar, estou certo? — Questiono.Messi balança a cabeça positivamente. Retirando um cartão de crédito e entregando em minhas mãos.— Use para fazer qualquer transação eletrônica, eles não vão te rastrear se estiver usando um desses.— Porque, fez algum feitiço nisso aqui? — Guardei o objeto em minha carteira.— É um cartão clonado! Está vinculado com a minha conta bancária. Vocês mortais conhecem encantamentos muito interessantes. E o cartão também é um meio para encontrar um antigo amigo, eles com certeza vão te ajudar a sumir até de Vera Cruz, se assim quiser.— Messi... isso não é um encantamento. — Segurei a risada. — Eu não pretendo fugir, não vai ser assim que vou erradicar o Equinócio, os sete demônios já fizeram demais para quem não merece e por conta deles, pessoas importantes para mim morreram.— Isso soou egoísta, gostei. — O diabrete deu um sorriso arrogante, dando um pulinho para sair de cima do balcão. — Eu iria falar para você sair do Rio mas, como nós dois sabemos que não vai sair, procure por Dario Silva.— Dario Silva?— Ele é um doador extremamente ativo da I.S.I.S e um velho amigo, ele estava lá naquela festa de quando você achou o Íncubo, lembra?— Nunca teria como esquecer daquilo, nem se quisesse. — Cruzei os braços, a hora de fechar a loja para o turno do Ricardo já estava quase chegando, por sua vez, era a oportunidade perfeita para sair e dar no pé.— Ele mora pela Região dos Lagos, perto de Dom Bandeirante. — Disse o diabrete. — Não tem como não achar a casa dele. O problema é que, é perto demais do Castelo Ébano.Ouço sirenes ao horizonte, estavam se aproximando, algo se materializou à minha esquerda, era justamente a lâmina "Redentor".— Gael, ameaça! Está vindo muito rápido! De todos os lados! — Manifestou o espírito.— Filhos de Jezabel! — xingou Messi. — Vá logo, vou dar um jeito de entrar em contato! — O diminuto estalou os dedos e sumiu em uma névoa de enxofre. — Saia da cidade! Encontre Dario. — Disse antes de sua voz sumir.As sirenes estavam cada vez mais altas, com certeza sabiam da minha localização muito provavelmente por conta de Kairós ou simplesmente por algum informante de Cassandra estar perambulando por Porto Real, não tive escolha a não ser simplesmente correr para os fundos da loja e sair dali por uma porta, onde, uma viatura tinha acabado de passar, apenas ajeitei a postura enquanto caminhava com tranquilidade para um beco nas proximidades, antes de impulsionar meu corpo em uma corrida ininterrupta. Poucos indivíduos tinham a capacidade de compreender que um vulto escuro atravessando as ruas pelas áreas mais reservadas na verdade era um vampiro, e mesmo estas, iriam se perguntar se aquilo era verdade, o motivo? Era meio-dia e segundo alguns dados, aparentemente nenhum vampiro tinha a capacidade de caminhar sob a luz do dia. Mais barulhos irritantes no céu, asas ruflando, hélices batendo, escondi-me atrás de um muro, vendo que não estava perseguido, mas estava sendo procurado por criaturas aladas, no caso, pégasos, águias gigantes e helicópteros. Forço a visão e com facilidade consegui notar, tinha um símbolo de um cefalópode estampado na lateral e todos os integrantes armados com fuzis, espadas, bestas ou até mesmo um enorme martelo de guerra.— Preciso achar uma porta. — Voltei minha atenção para baixo, estava próximo da subida de um morro conhecido pela alta taxa de criminalidade, não ousei falar o nome por termos... bem eu não quero ter mais gente atrás de mim não! — Na verdade, eu só preciso chamar a atenção.Corri subindo o morro, batendo em literalmente todas as portas, toques rápidos de minhas mãos que eram reagido em estouros nos portões metálicos como o som de disparos, aquilo com certeza chamaria a atenção dos presentes, tudo estava dando certo, quanto mais alto subia, mais rápido tentava correr até que me notei estar sendo perseguido por algumas motos, todos estavam armados com seus garupas atirando em mim, Evoquei o Escudo das Filhas de Sofia (Sofis) a partir do Arc, de modo a refletir os disparos e até mesmo alguns feitiços ofensivos, tinham pessoas e criaturas que dominavam a energia mágica ali, parei repentinamente, pois, as motos estavam me perdendo de vista, e bem ao me alcançarem, nada disseram, apenas tentavam me acertar. Precisei de poucos segundos: um para pensar, dois para me movimentar, três para refletir os disparos para cima, e quatro para que uma das águias fossem atingidas, chamando a atenção de todo o grupamento aéreo de Cassandra para os meus mais novos amigos, os Traficantes do Morro do Prego Torto (Não me perguntem o motivo deste nome)! Tentei fazer outra coisa, forçar um transe em todos, felizmente o grupo de nove duplas me olharam por tempo o suficiente para conseguir alternar o meu olhar com velocidade o suficiente.— Eles estão vindo para matar vocês! — Gritei aos indivíduos.Incompreensão, medo e depois revolta surgiu na face dos "honestos trabalhadores", voltando sua atenção para a armada aérea e simplesmente disparando seus ataques, sejam mágicos ou na sagrada bala nada perdida, causando uma confusão e me permitindo sair dali correndo entre os apertados becos ao ponto de conseguir sumir, com sucesso. De uma coisa estava certa, meus olhos estavam ardendo, irritados e com certeza aquilo tinha sido consequência de usar a hipnose tão rapidamente e de uma forma tão porca. Notei um banheiro químico ali perto e bem, era só usar uma das Portas de Pedro, o problema era conseguir chegar à Dom Bandeirante já que nunca tinha ido para aquele lugar antes, as chances de cair em algum lugar completamente aleatório, atravessei aquela Porta de Pedro tentando focar em qualquer lugar da Região dos Lagos. Mas se esse plano maluco tivesse dado errado, é óbvio que eu não estaria contando essa história.

Os Contos de Nova Atlântica III: O Pináculo de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora