CLAREZA DA ESCURIDÃO

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Justiça

Era o dia. Adelaide podia sentir, claro que Lyse não diria nada. Mas ela era uma vampira, podia sentir o cheiro que poderia ser tão bom se tornando podre ao seu olfato. O cheiro da morte.

— O que quer fazer esta noite?

— Não faz isso.

— Fazer o quê?

— Agir como se fosse só mais um dia, porque para mim não é.

— Mas é só mais um dia, Ladie.

— Você vai partir, Lyse. Como sempre faz e eu vou ficar. E cada parte do meu dia vai se tornar cinza de novo, porque eu demorei séculos para poder ver uma cor de novo e mesmo assim não te superei. Porque, para mim, você foi tudo. Porque um momento com você é uma eternidade para mim. Eu não consigo esquecer.

— Não somos feitas uma para outra, Adelaide. Quando você nasceu, eu já tinha dois mil anos. Não existem almas gêmeas.

— Mas existem pessoas que insistem em permanecer. E, eu reviraria o mundo para achar a cura da sua maldição.

— Mas você não pode, Adelaide. Porque a minha maldição não pode ser dita em voz alta, mas se quer saber a origem. Eu direi, eu matei todo o meu vilarejo, a minha família, eu devo a cada vida que tirei.

Os olhos da vampira se arregalam e ela dá um passo para trás. Nunca imaginou isso em todos esses anos que conheceu Lyse. Ou que achava que conhecia. Não era um julgamento, ela mesma era uma sanguinária que se vingou de um por um dos responsáveis pela morte de seus pais, mas não imaginava que Lyse carregava um fardo tão grande como esse.

— Perdeu a fala?! Surpresa? Eu não sou o anjo que colocou em mente que eu era, Adelaide.

— Nunca te vi como um anjo. Te via como alguém que minha alma gostaria de estar por perto.

— E agora? o que vê? Consegue enxergar minha aura sombria?

— Para com isso, Lyse! Eu não sei quais foram os seus motivos, mas eu passei anos ao seu lado. Sei que não faria isso de propósito! Olha para você! Cuida de flores e abelhas! Está mesmo querendo me convencer a te odiar? Achei que era mais esperta que isso.

— Mais esperta que isso? —A risada da bruxa ecoa pelo convés e é assustadora— Toda vez que eu olho para você, eu vejo meu próprio reflexo, a parte que eu não gosto de lembrar que existe. Você carrega muitos pecados e me lembra dos que eu mesma cometi com minhas próprias mãos, Adelaide. Mas não somos a mesma pessoa, porque você tem coragem de mostrar quem realmente é. Você não se envergonha da sua origem, mas eu ainda não consigo tolerar minha existência, não quando outras pessoas partiram quando deveria ter sido eu, por todos esses séculos, por todos os campos que eu vi dizimar, por todas as estações que passaram, por todo o medo que vivi, por todas as vidas que vi partir. Não sou digna de ter alguém ao meu lado, não sou digna de amor. Seus pecados não chegariam nem perto dos meus. Eu sou o monstro aqui.

— Eu sei que você vai partir hoje e se a sua intenção era tentar me fazer te odiar, não funcionou. Amanhã, quando o dia amanhecer, eu ainda vou querer estar com você, eu ainda vou amar você.

— Você não, Adelaide. Porque dessa vez não vai ser como da última vez. Eu não vou morrer como aconteceu. A maldição vai despertar.

Os olhos da vampira, que até então estavam no tom mais escuro de roxo possível, se tornaram do tom mais vibrante de vermelho.

•••

Injustiça

A bruxa percebeu quando os olhos da vampira mudaram, imediatamente de cor. Era como se ela tivesse entrado em alerta, percebendo o que estava em jogo, notando o verdadeiro perigo à sua frente.

— O que quer dizer com isso? — a vampira está em alerta e gostaria que Ângelo estivesse ao seu lado.

— Exatamente o que você acha que é. Assim que der meia-noite eu não serei mais a Lyse que conhece e eu, realmente, sinto muito por isso. Eu não escolhi vir para cá, nem te magoar.

— Lyse... Para! Para! O que está dizendo? Como assim não será mais a pessoa que eu conheço? — a bruxa não pode falar demais do que envolve a maldição, porque é envenenada, mas queria tanto ser cem por cento honesta com Adelaide.

Lyse queria dizer em volta alta o quanto ama a vampira, mas não pode e isso não tem nada a ver com a maldição, só não diz porque sente que não seria justo, porque seria dilacerante. Não tem o direito de ser amada.

— Adelaide, eu não posso dizer mais nada, só que eu sinto muito e se eu pudesse escolher um bom lugar para partir, seria em seus braços. — Os olhos da bruxa começam a se encher de lágrimas e Adelaide se aproxima, encostando sua testa gélida na testa tão quente de Lyse que parece estar com febre.

— Para de dizer essas coisas. Eu amo você, Lyse. Para sempre, mesmo que não possa dizer em voz alta, eu sei que me ama também. — a bruxa não responde.

A vampira percebe que o corpo que abraçou está fraco e mole, Lyse partiu. Mas quando se afasta, para tentar olhá-la nos olhos mais uma vez, a bruxa abre os olhos e eles estão verdes cintilantes. A cor de quem já tirou vidas inocentes. A cor dos olhos de um híbrido.


Fim. 

Lua de Sangue - AdelaideOnde histórias criam vida. Descubra agora