O que sobra de nós depois que morremos? Eu não falo do corpo que é enterrado, ou cremado, ou seja lá o que a sua cultura diz, é mais o que nós deixamos pro mundo. É difícil pensar em deixar de existir, ainda mais tão cedo, sem filhos, sem ficar velho ou sem ficar doente, as coisas deviam funcionar dessa forma, não é essa a ordem natural? Quando seu nome tá escrito numa lápide, sua data de nascimento e a data da sua morte são separados por um traço entre elas, e esse traço contém tudo o que você foi. Seu início na esquerda, toda sua vida no meio, e o encerramento na direita. Então, a gente é resumido por um traço que se apaga durante os anos, e a menos que você seja uma pessoa muito famosa, você vai ser esquecido, e esse é o fim das pessoas comuns.
Eu acho que falar "não gosto de velórios" algo muito engraçado, afinal, existe alguém que gosta disso? Se tiver algum doente que GOSTA de participar de velório, tem que internar essa pessoa com certa urgência. Mas, se me vale a hipocrisia, eu odeio velórios. Esse clima triste, todo mundo chorando, você não sabem quem consolar e não sabe se quem precisa ser consolado é você, sabe? Horrível, não combina comigo. Mas aqui estamos, e eu não consigo evitar me sentir culpado pelo que aconteceu, já que de certa forma, tem sangue nas minhas mãos.
Madrugada de terça-feira, três dias atrás.
- Como assim você não sabe? - Me levanto do chão e pego qualquer pedaço de pano pra limpar meu sangue, o que acaba sendo uma camisa do Botafogo de Paulo.
- Calma aí, larga essa, essa não! - Ele tenta pegar da minha mão. - Essa foi cara!
- Todas foram caras, Paulo, você só compra camisa oficial! - Tento puxar de volta.
- Que barulho é esse? - Helloi levanta. - Roldem, porque você tá sujo de molho?
- Não é molho, eu já explico, mas antes eu preciso me limpar! - Puxo com muita força. - Qual é, Paulo, larga isso.
- Nunca! - Ele abaixa a cabeça e fica lambendo entre meus dedos, me excitando.
- Lucas, não é hora pra isso, pega outra coisa, anda! - Lian diz na minha orelha.
- Mas eu tenho medo de sangue...
- Pega outra coisa, qualquer coisa, só larga a camisa desse carioca. - Ele pede, então eu cedo, largando a camisa, fazendo Paulo cair de bunda no chão.
- Esticou todinha, cara, que coisa triste. - Ele começa a chorar, segurando a camisa. - Por quê? POR QUÊ?
- Foi mal, mas eu ainda tô sangrando...
- Toma aqui. - Helloi me arremessa algo, que cai no meu rosto. - É minha cueca, eu ia botar pra lavar, então pode usar. - Dou uma forte cheirada no pano em meu rosto.
- Valeu, amigo, você é muito legal, diferente de outros aí. - Limpo meu sangue com sua cueca da Florence and the Machine.
- Você queria usar uma relíquia minha pra isso, tá maluco? Essa camisa é rara! - Paulo se defende.
- Mas essa não é da temporada passada? - Pergunto.
- Sim, logo, tem mais de um ano, ou seja, rara. - Ele para de chorar e se senta na cama.
- Ah sim, show. - Solto gemidos de dor toda vez que limpo o ferimento, eu ser baitola me atrapalha muito às vezes.
- Com quem você tava falando? - Helloi pergunta. - Era comigo? Porque eu esqueci de responder, eu acho.
Olho pra Lian do meu lado, não sei se eu devo contar dele pros dois, mas eu acho que o coreano lê meus pensamentos, porque ele coloca a mão em cima da minha e me dá um olhar reconfortante, provavelmente me dando permissão de falar sobre ele, o que me deixa sorridente.
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Agreste Indigo
ParanormalSeguir seus sonhos pode ser uma tarefa difícil para a maioria das pessoas, mas para Lucas, era o que o mantinha vivo. Saindo de Ijuí, ele conseguiu conquistar o que queria: entrar para a Academia Mulberry, a maior universidade do país, em Garanhuns...